O Espírito das Instituições. Um estudo de História do Estado, faz-nos lembrar uma outra obra L’esprit des lois (1748) de Montesquieu (1689-1755), obra inspirada na teoria da origem do poder político de John Locke (1632-1704), na qual procede à apresentação de conceitos sobre formas de governo e exercícios de autoridade política.
Na realidade, o ponto de partida do Autor de O Espírito das Instituições. Um estudo de História do Estado é uma questão de fundo: As instituições políticas têm um espírito? Dito de outro modo, pode explicar-se o nascimento e estruturação das instituições do Estado por um conjunto de manobras operativas (políticas) em vista da criação de um aparelho / máquina funcional, ou, de outro modo, é igualmente necessário compreender a realidade social onde operam dinamicamente os homens ao serviço das instituições (sociedade política)?
O Autor, por seu lado, dá perfeito seguimento, ainda que sob outra perspectiva, a uma obra de maior fôlego que constituiu a sua dissertação de doutoramento: Judex Perfectus: Função jurisdicional e Estatuto Judicial em Portugal (1640-1820), Coimbra, Almedina, 2003.
A monografia de Barbas-Homem tem um desígnio, que para muitos dos que se atém a uma concepção pós-moderna e pós-racional do Estado e da sua história, é pura ilusão: inscrever no tempo e no espaço a origem do Estado Moderno em Portugal. Dito de outro modo, o Autor concebe que a explicação do processo de construção do Estado deve radicar numa posição jushistoriográfica com tradições na Escola da Faculdade de Direito de Lisboa, invocando nomes como Ruy de Albuquerque, Martim de Albuquerque, José Adelino Maltez entre muitos outros, ou os pioneiros Paulo Merêa e Marcello Caetano. Estes pensadores do político detém uma concepção do Estado que parte de uma análise dos múltiplos factores históricos justificativos, conferindo-lhe uma amplitude cronológica, ideológica e geográfica.
Por isso, refere que o âmbito de abordagem é sobretudo marcado pela emergência do Estado Moderno, do Renascimento à revolução de 1820, não deixando, por contraponto, de realçar os avanços medievais no que respeita, por exemplo à problemática dos ofícios régios e esferas de atribuições, ou os do liberalismo em que o Estado parece manifestar-se, de acordo com estudos recentes de Ruy de Albuquerque e de Martim de Albuquerque, administrativamente falando, como mais absoluto do que no tempo do «inexistente» absolutismo (referimo-nos evidentemente, ao século XVI). Veja-se o que o Autor diz a propósito da construção metodológica e ideológica («mitológica») do conceito de “absolutismo” pela historiografia oitocentista, no capítulo I – A Instituição do Estado (pág. 21 e ss.).
Partindo de uma caracterização do Estado numa perspectiva jushistoriográfica, contesta igualmente as correntes da historiografia do Estado e da teoria do Estado que concebem o aparecimento e a construção do mesmo como o resultado da aplicação de um modelo de inspiração militar e de outros que se apoiam na figura da comissão. Nem uma nem outra servem de esteio à realidade estadual portuguesa, conforme refere: “O estudo histórico das instituições implica um projecto hermenêutico e uma específica compreensão metodológica” (pág. 15).
Por isso, o tratamento que o Autor confere à dimensão institucional e orgânica do aparelho funcional do Estado encontra-se particularmente relacionado com a análise das práticas burocráticas “utilizadas no interior das instituições, evitando centrar a história exclusivamente na legislação ou na ciência do direito” (p. 27). O Autor realça o papel das reformas legislativas relacionando-o com as perspectivas avançadas pela literatura política e jurídica da época, ou seja, procede à averiguação da visão detida pelos tratadistas portugueses do Estado, instituições e oficialidade, concluindo que, “Como [tem vindo a ser] demonstrado por Martim de Albuquerque, a teorização política em Portugal ficou à margem de Maquiavel – nem mesmo na sua sombra.” (p. 36).
Segundo o Autor, “O nascimento do Estado moderno encontra-se ligado à crise da sociedade no século XVI, em consequência dos descobrimentos e da reforma religiosa (…) O Estado tornou-se necessário neste momento para restabelecer a ordem e a disciplina sociais” (p. 41-42). As questões da legitimidade do poder do monarca, da raiz da soberania, da razão de Estado, da centralidade e funcionalidade das instituições políticas e judiciais, do renascimento ao barroco final, são outras tantas questões especialmente tratadas no primeiro capítulo.
A atitude de Barbas-Homem é a de nos introduzir nas correntes da literatura jurídica e política dominantes no ancien régime (influências exteriores no pensamento jurídico de autores portugueses), semeando, no decurso da obra, exemplos paradigmáticos de práticas e exercícios de autoridade e de governo que nos esclarecem sobre o ponto da situação evolutivo das sociedades políticas num determinado período histórico. Por conseguinte, o Autor revela-se atento às mudanças históricas e procura explicá-las naquilo que podem justificar as reformas políticas do Estado, sem esquecer a referência às fontes. Como avisa nas páginas iniciais, “ Não se trata, portanto, de aplicar ao passado um quadro interpretativo pré-estabelecido, mas antes contextualizar os elementos narrativos” (pág. 17).
A análise não se limita a desenvolver os princípios teóricos e doutrinais da emergência do Estado moderno na base de interpretações especulativas, serve-se antes de mais de documentos históricos, articulando a análise do processo legislativo, com o funcionamento das instituições judiciais e políticas, bem como com o papel dos homens do poder (sociologia do poder). Deste modo, podemos concluir que a análise de Barbas-Homem combina de forma rigorosa ciência política (teoria e filosofia políticas) e ciência administrativa (estrutura orgânica e funcional das instituições).
A estrutura da obra está dividida em dois capítulos maiores, num primeiro capítulo intitulado A Instituição do Estado, trata dos mecanismos de construção do Estado, da natureza e fins, da centralidade das instituições, da capacidade de organização política, dos problemas fundamentais que se levantam em torno da racionalidade da acção política do Estado, vistos à luz da literatura jurídica coeva e das relações entre Estado e sociedade (homens). No segundo capítulo, intitulado Instituição e Privilégio do Estado adianta soluções para os problemas atinentes ao funcionamento institucional, político e jurisdicional do aparelho de Estado. O Autor debruça-se sobre as raízes históricas do Estado moderno na Europa, inserindo-se numa tendência renovada da história do pensamento político, onde pontificam os nomes de Ernst Kantorowicz (1895-1963), Walter Ullman et al., e os mais recentes Janet Coleman, António Padoa-Schioppa, Jean-Philippe Genet, Neithard Bulst, Wolfgang Reinhart, Philippe Contamine, José Manuel Nieto Soria et al. que buscam uma compreensão “dos problemas concretos da história do Estado (…) das suas vertentes: as instituições militares e a guerra; o papel do indivíduo na teoria e na prática política; a legislação e justiça; a iconografia, propaganda e legitimação; as elites; as resistências e a comunidade.” (p. 123). Para o Autor, é na base dos estudos mais recentes que se deve procurar interpretar o “espírito da construção institucional do Estado moderno” (p. 124).
Conforme adianta, “O Estado é a estrutura que surge no Renascimento para organizar o poder monopolizando o seu exercício, até então partilhado por inúmeras entidades autónomas ou independentes (…) O problema essencial do Estado moderno é o de criar as condições para a satisfação das necessidades colectivas pelas quais o Estado é responsável, assegurando a eficácia das organizações e evitando o abuso de poder” (p. 125). Esta questão é particularmente desenvolvida, no segundo capítulo da obra, na perspectiva do alcance e capacidade de gestão dos serviços do Estado, convencionalmente designada de centralização, dos alvores da modernidade ao barroco final.
Para concluir, e tomando como referente a interpelação lançada em epígrafe, relembremos: “As instituições têm um espírito? ”, o Autor manifesta a sua firme intuição inicial, não basta conhecer instituições do Estado é indispensável apreender a cultura jurídica e política das sociedades no tempo.