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Recensão por: Andreia Fernandes Silva
Reflexões em torno da cultura popular
Reflexões em torno da cultura popular*
Andreia Fernandes Silva
Introdução
A obra assenta numa apreciação geral aos procedimentos operados pelo autor na
elaboração da tese de doutoramento, apresentada no Instituto Superior de
Ciências do Trabalho e da Empresa em 1991, defendida em 1992, e que esteve na
origem da publicação do livro, em 1994, sendo o resultado de um exercício de
“aprendizagem”. O autor esclarece logo de início que a “arquitectura do
presente texto não reproduz a do trabalho que ele divulga”. Apesar da pouca
familiaridade com a Sociologia, pois a formação inicial do investigador era
em História, Augusto Santos Silva anuncia desde logo a estreita ligação
entre “operações de reflexividade epistemológica, construção teórica e
investigação empírica” (Silva, 1994: 7), denunciando o interesse em aprofundar o
conhecimento em outras áreas do saber tais como a Antropologia e a
Sociologia. Ao longo de mais de quinhentas páginas, o autor explica os seus
procedimentos e opções teóricas que mobilizou para investigar o seu objecto de
estudo, acentuando que é uma viagem por vários territórios e referências. O
livro tem uma estrutura dividida em três grandes partes que a seguir se
enunciam:
- Análise cultural dos processos sociais que consiste numa viagem por
vários territórios e referências;
- Estratégias de explicação dos processos sociais, isto é, a análise
científica propriamente dita e a que ocupa a maior parte da obra,
num vaivém constante entre a teoria, o trabalho desenvolvido e a
apresentação de algumas das opções tomadas;
- Condições da investigação, isto é, os problemas e as decisões de natureza
técnico-metodológica desenvolvidas.
Esmiuçando um pouco mais a estrutura do livro, e tendo em conta a
advertência inicial por parte do autor ao assumir que este “é um trabalho de
construção teórica (…). Quero proceder ao modo de um construtor de edifícios que
empregasse materiais de diversa proveniência, sem curar demasiado de tal
diversidade desde que fosse possível articula-los numa arquitectura e numa
engenharia viáveis e apelativas” (Silva, 1994: 8). Deste modo, a primeira parte do
livro começa por anunciar a problemática da cultura e os planos de abordagem
escolhidos para a investigação, revela ainda as estratégias e explicação
dos processos sociais (dialéctica entre estruturas e práticas, direcções
de análise, socialização-acção, formação de grupos, recursos poderes e
capitais, campos quadros de interacção); justifica o recurso ao estudo
interpretativo e aborda ainda a construção social e reconstrução sociológica da
cultura popular a partir da distinção povo/plebe, lógicas de dominação,
manipulação e de afirmação. Em linha de conta são tidas algumas das teses
defendidas por Pierre Bourdieu e Anthony Giddens, passando por Clifford
Geertz, Michel de Certeau ou a referência ao agir comunicativo de Jurgen
Habermas, entre outros. O autor adverte que “não deve ser escamoteado o peso
dos condicionamentos sócio-institucionais na demarcação de fronteiras
entre paradigmas científicos, assim como entre disciplinas e especializações
subdisciplinares” (Silva, 1994). Na mesma linha de José Madureira Pinto,
a par de quem o autor coordenou o volume Metodologia das Ciências Sociais esta “demarcação é dinâmica, alterável e em alteração” (Silva, 1994:
8-9).
Num segundo momento é feito o enquadramento da vertente religiosa,
nomeadamente com a referência e descrição das festas e romarias alvo de análise,
acentuando o facto de estes momentos de religiosidade se articularem com a
propaganda do culto e o controlo social do Estado Novo com vista a reprimir,
doutrinar e integrar. O autor também considerou oportuna a deambulação por
territórios como memória, tradição, sagrado, participação, integrando deste modo
a religião no sistema cultural. Este périplo inclui as transformações [recentes] da
comunidade camponesa; os padrões de conduta face à mudança para terminar
com aquilo que designa por encruzilhadas da sociedade local que condensava
“vários mundos num só local”.
Por último, são revelados os contextos, recursos e limites da investigação: com
especial destaque para o trajecto e resultados de observação, a partir daquilo que
o autor chama de localizar as vozes através dos métodos e técnicas que lhe
permitiram reconstruir sociografias.
A presente desmontagem, se assim se pode chamar a uma leitura atenta aos
caminhos traçados pelo investigador, seguiu o mesmo percurso do autor, ou seja, a
partir da identificação dos diferentes momentos do estudo, mas também se baseia
numa análise fina dos indícios da planificação e estruturação dum projecto de
investigação sociológica.
O presente artigo começa pela abordagem a alguns aspectos da componente
teórica, na parte da Cultura, seguindo-se uma apresentação das opções tomadas
pelo investigador e que se preferiu enquadrar dentro do termo Território, não só
porque se faz a descrição do local de estudo do investigador, mas também porque
as opções metodológicas tiveram em conta esse topos. Por último, enunciam-se
as permanências e Desigualdades de uma sociedade na encruzilhada de
tempos, gerações e lugares. Encerra-se esta viagem exploratória com uma
abordagem à autocrítica que o próprio investigador vai revelando ao longo da
obra.
1 Cultura
1.1 A cultura na encruzilhada dos processos sociais
O autor inicia a obra pelo enquadramento teórico no qual se insere a sua
investigação, acentuando, no entanto, que apesar do âmbito de estudo se inserir na
Sociologia da Cultura, uma vez que a análise cultural serviu de base e guia ao
trabalho empírico desenvolvido, outros aspectos, dimensões e áreas de
conhecimento iriam ser tidos em conta neste processo. Augusto Santos Silva
anuncia que pretende esclarecer os modos e factores de construção social da
cultura popular entendida, quer como universo de práticas, instituições e bens
culturais, quer como categoria de análise desse universo. Isto é, a partir de
padrões e modelos dos actores locais pensar nos modos como estes actualizam e
interpretam as suas práticas; como encaram e recriam; como constroem uma nova
experiência de comunidade – na tradição transformada, nos acontecimentos,
pessoas e histórias, isto é, na encruzilhada de condições, tempos e projectos. Este
trabalho de observar os processos sociais do ponto de vista da cultura, um termo
que o autor considera um “domínio muito impreciso” (Silva, 1994), exige, na sua
acepção que todos os processos sociais como factos sociais totais, aqui
entendidos na linha de Marcel Mauss, ao mesmo tempo que se tem em conta a
“pluralidade de dimensões implicadas em qualquer facto social” (Silva, 1994:
16).
Esta delimitação do enfoque nas dimensões culturais dos processos sociais é
explicada na seguinte citação:
“as dinâmicas através das quais, em diversos contextos socioculturais, diversos grupos e instituições vão estruturando e reestruturando o território da cultura, vão construindo representações acerca do que seja a cultura, vão criando e transformando campos e agentes especializados, identificados como culturais – todas essas dinâmicas produzem factos culturais num segundo sentido» (Silva, 1994: 16).
1.2 Planos de abordagem
Sem avançar muito na definição do termo cultura, o autor prefere traçar desde
logo um itinerário de problemas a começar pela tensão entre a teoria e a empiria,
aproveitando essa tensão como uma vantagem.
Ou tal como defende Madureira Pinto e Ferreira de Almeida no livro dedicado
à investigação em ciências sociais “o «mistério» em causa só poderá solucionar-se
se tivermos podido construir, a partir de coordenadas intelectuais tão explicitadas
quanto possível, um conjunto estruturado de interrogações e hipóteses
devidamente especificadas”, uma vez “que só esse património acumulado de
interpretações provisoriamente validadas a que se chama teoria, constitui, em
princípio, adequado ponto de partida para a pesquisa” (Pinto e Silva, 1986:
56).
Os mesmos autores referem ainda que “o papel de comando da teoria” não
deve descurar que essa teoria “possa por si só controlar racionalmente todas as
componentes do ciclo de observação/demonstração empírica” (Pinto e Silva, 1986:
58). Dito de outro modo à teoria principal escolhida para orientar um dado fenómeno
social dever-se-ão ter em conta teorias auxiliares que em articulação com uma
armadura metodológica bem montada possam melhor explicar a realidade social em
estudo.
Como forma de delimitar o seu objecto de estudo, Santos Silva considerou
cinco níveis ou dimensões de análise. A saber:
- Cultura e atribuição de sentido, isto é, pretende-se averiguar as dimensões
simbólicas envolvidas em qualquer conduta. A análise cultural é entendida
como a análise dos processos sociais, em especial, daqueles socialmente
construídos como culturais (dimensão simbólica).
- Em segundo lugar, enquadrou a cultura como padrão de conduta, isto
é, procura a dimensão simbólica das práticas, ou dito de outro modo, a
descoberta dos padrões simbólicos que carrilam as condutas;
- A cultura como prática duplamente expressiva,
na medida em que o autor considera que “toda a acção social é carrilada
por padrões simbólicos, modelos socialmente produzidos de representação
e conduta quotidiana” (Silva, 1994: 25);
- Outra dimensão abordada pelo autor são os movimentos de gestação de
obras culturais, através dos quais as práticas, bens e valores se tornam
supra-quotidianos.
Neste ponto, Silva refere-se a certas criações e usos de natureza simbólica
que, ao longo de práticas de repetição e, também devido à intensidade
com que são assumidos, se transformam em algo mais do que aquilo
que eram originalmente (Silva, 1994: 29);
- Por último, o autor aborda a génese e funcionamento dos campos
culturais, isto é, a existência de redes de instituições e agentes
especializados, que se configuram como espaços de relações dotados de
certa autonomia face à globalidade do espaço social (Silva, 1994: 33).
1.3 A cultura popular
Santos Silva teve como foco de estudo a cultura popular, entendida como
intersecção dos vários modos e agências de socialização; mas também procurou
dar conta das pluralidades das formas de educação e de aprendizagem social; não
descurando os tempos e lugares em que se estruturam os processos sociais e as
razões, circunstâncias e implicações das várias e compósitas maneiras de abrir
portas. Deste modo o autor revela uma das questões às quais a sua investigação
tenta dar resposta (1994: 387).
Como é que uma população tradicionalmente vinculada à cultura camponesa –
no sentido de socializada por referência a padrões de conduta de raiz camponesa –
e à pequena cultura popular – no sentido de habituada às iniciativas locais de
promoção de actividades lúdico-expressivas de participação benévola e dimensão
pública, folclore, futebol, música, romagem e excursão, e tornada suporte e alvo
primeiro da formação de um campo semiformalizado de agentes e agências em
torno do que é simbólico e ideologicamente apresentado como cultura popular, a
cultura do «povo das aldeias»; como é que essa população assimila a oferta
cultural de entretimento, os produtos e valores das indústrias de comunicação,
recreação e cultura, cuja escala de funcionamento é caracteristicamente
supra-local é nacional e internacional , e que lhes chegam por diversos
canais, a televisão, a imprensa ou a rádio, o disco, a cassete ou o cinema, o
desporto de alta competição, a publicidade ou a moda, mas chegam efectiva e
duradouramente?
A inclusão da dimensão da cultura de massas na questão permite integrar
neste estudo as mudanças em curso numa localidade com as características de S.
Torcato. O autor nota a este respeito duas mudanças importantes:
“Uma é a construção social do «tempo livre», outra o aumento
dos níveis de consumo familiar” (1994:387).
2 Território
2.1 Planificação e estruturação dum projecto de investigação sociológica:
desenho e projecção das etapas de pesquisa previstas
Quivy e Campenhoudt organizaram o livro Manual de Investigação em Ciências
Sociais, dividindo o processo de investigação em sete etapas. À primeira
corresponde a pergunta de partida, seguindo-se a exploração, a problemática, a
construção do modelo de análise, a observação, a análise de informações e, por
último, as conclusões retiradas.
A presente desmontagem do processo de investigação levado a efeito por
Santos Silva terá como orientação essas sete etapas, mesmo que não surjam por
esta mesma ordem, pois pensa-se que estes momentos são uma forma de
melhor reflectir o processo, não só porque obriga a redobrada atenção aos
pormenores, sobre todos os passos da investigação delineados pelo autor e, ao
mesmo tempo, se pensam e repensam os métodos e técnicas que melhor se
podem adequar à investigação que se pretende levar a efeito no âmbito do
doutoramento.
Assim, Santos Silva tinha como intenção restituir e interpretar os quadros de
sentido e de representação, o conhecimento e a avaliação local dos processos locais
tendo como dimensão a chamada cultura popular. Para atingir este objectivo teve
num primeiro momento que conhecer o terreno no qual iria operar, um momento
de contacto exploratório onde se faz não só ao levantamento dos elementos que
possam ser pertinentes ao estudo em causa, como a partir da consulta
de documentação e informação diversa, da análise de conteúdo desses
documentos, se começam a perspectivar pistas e orientações para o trabalho a
desenvolver. Na verdade, estes procedimentos exploratórios devem sempre serem
articulados com os conhecimentos teóricos que permitam balizar o caminho a
seguir.
Santos Silva começou por ouvir actores locais, nos seus contextos habituais de
conduta, recorreu a documentos e informações de enquadramento histórico não só
da localidade, mas também das associações culturais com vista a encontrar uma
perspectiva cronológica da evolução dos acontecimentos.
De notar que o autor já tinha um conhecimento prévio do local que escolheu
para estudar. “Cheguei pela primeira vez à freguesia através do seu passado”,
justifica referindo-se a uma pesquisa realizada em 1978 no âmbito da Licenciatura
em História e em que ao trabalhar sobre um motim de camponeses pela posse do
corpo de um santo, decorrido em 1805, despertou para aquela localidade. Anos
mais tarde quando decide efectuar o estudo patente no livro aqui em análise
lembra que era seu objectivo integrar-se numa “fileira de estudos” que se
focalizava “nos problemas da industrialização em meio rural, da imbricação
de economias e culturas camponesas com o modo de vida operário, e
das dinâmicas de polarização urbana de envolventes rurais” (Silva, 1994:
142).
Para além de estudar o presente, a partir de um fio condutor do passado, no
processo de auscultação dos agentes sociais em S. Torcato também foram tidas em
conta as perspectivas pessoais que cada um dos intervenientes auscultados tinham
do presente e dos horizontes de vida, pessoal e colectiva. Na verdade, o autor
procurou “integrar toda essa informação disponível, e sempre reconstruída, numa
interpretação mais ampla que os dados” (1994: 489-490). Embora faça a
advertência de que esta é “uma interpretação científica e pessoal” resultado do
encontro entre problemáticas, teorias e métodos, mas também a partir de uma
leitura que mesmo permeada por normas se baseia numa selecção que traz em si
uma carga de subjectividade.
2.2 Objecto de estudo e o momento da interrogação
Entendendo tal como Gauthier que “a metodologia de investigação
engloba tanto a estrutura do espírito e da forma da investigação
como as técnicas utilizadas para pôr em prática este espírito e esta
forma”,
concebendo a observação dos fenómenos sociais sempre e com a teorização,
verifica-se que o trabalho de Augusto Santos Silva também articula a teoria e a
análise empírica, na mesma linha defendida por Madureira Pinto, um dos
primeiros a acentuar a função de comando da teoria, embora seja defensor de que
esta não deve ser uma camisa de forças que feche os olhos à realidade e à
especificidade do que se está a estudar.
Terminologias e esquemas à parte, no caso do trabalho desenvolvido por
Santos Silva, era intenção inicial do investigador compreender os processos de
mudança sociocultural no espaço social polarizado por uma freguesia
periurbana de uma região de industrialização difusa, isto é, pretendia-se a
reconstrução de uma experiência pós-camponesa de comunidade, sendo
este o objecto central de pesquisa, enquadrada na vertente da cultura
popular.
Silva vai dando pistas ao longo do livro das perguntas e hipóteses que pretende
testar. Lembrando de novo Madureira Pinto e Ferreira de Almeida o primeiro
momento é o da interrogação:
“a forma e os protocolos da pergunta hão-de condicionar
as respostas que se obtém, ou seja, as evidências empíricas
a que a investigação conduz são por ela antecipadas ou, pelo
menos, susceptíveis de acolhimento no âmbito do questionamento
formulado” (Almeida e Pinto, 1986: 62).
Santos Silva apresenta como objectivos para o seu estudo as seguintes
situações: a restituição e explicação das práticas do ponto de vista dos poderes,
efectivamente realizáveis em cada campo, de que dispõem – desigualmente – os
actores - , isto é, interpretar as práticas como o resultado de sucessivas
combinações, entre o sistema de disposições adquirido e as propriedades e
aptidões definíveis e jogáveis; mas também na dimensão do acesso à cultura –
nomeadamente do controlo dos meios, dos instrumentos de produção e de
recepção requeridos e prezados em cada campo.
A observação de comportamentos colectivos marcantes na vida social – as
práticas culturais, em particular, tal como são condensadas e potenciadas por
ocasião de festividades cíclicas ligadas à devoção local a um santo; a forma como
as principais agências de socialização procederam à inculcação ao longo do
tempo, foram alguns dos pontos alvo de atenção no processo de investigação
aqui em causa. Neste processo Silva inicia “o cruzamento de diferentes
lógicas de observação dos processos sociais”, uma vez que no seu entender a
“interdisciplinariedade constitui uma exigência tão intrínseca à investigação em
ciências sociais” (Silva, 1994: 127). O autor refere ainda que empreendeu uma
pesquisa de cariz monográfico, tendo seleccionado um estudo de caso, opção
justificada pelo autor: pela estratégia interpretativa praticada e pela estratégia
metodológica “a opção pelos procedimentos de observação directa e sistemática e
de entrevistas semi-estruturadas, ou pela combinação entre os protocolos de
recolha antropológica e sociológica e a análise historiográfica de fontes
documentais” (Silva, 1994: 141).
2.3 O processo social de observação
Situada a nordeste do concelho de Guimarães, distrito de Braga S. Torcato é uma
vila predominantemente rural, na margem esquerda do Rio Selho. No século XIX
foi iniciada a construção do Santuário de S. Torcato. No interior da Igreja
encontra-se o corpo incorrupto de S. Torcato, (um dos primeiros evangelizadores
da Península Ibérica). A localidade é rica em festas e conhecida pelo seu
folclore, na verdade, desde 1852, no 1o. Domingo de Julho, umas das
maiores e mais concorridas romarias do Minho: a Romaria Grande de S.
Torcato.
A escolha desta localidade para estudo de caso pelo investigador surgiu, por
um lado, de um conhecimento prévio que já tinha sobre a localidade,
depois como pretendia abordar os problemas da industrialização em meio
rural, palco de imbricação de economias e culturas camponesas com o
trabalho e o modo de vida operário, tendo em conta as dinâmicas de
polarização urbana de envolventes rurais, S. Torcato correspondia a este perfil.
A própria dimensão demográfica que no caso de S. Torcato, com 3500
habitantes, permitia a mobilização de estratégias intensivas em articulação
com a cultura popular. Outro aspecto importante para a selecção era
que o território escolhido tivesse uma história, isto é, possuísse espessura temporal.
S. Torcato possuía, à época da investigação:
- 1 galeria de arte
- 2 museus
- 2 grupos folclóricos em actividade
- Várias colectividades de lugar; um grupo de futebol, uma associação
cultural (com um passado de intervenção social local); um corpo incorrupto de devotos a S. Torcato
- Escola preparatória
- Escola secundária
- Centro de saúde
- Uma Casa do Povo
- Em perspectiva um centro de formação profissional
A estes elementos junta-se uma História própria, um factor de peso na
óptica do investigador para a sua selecção para objecto de estudo. Outro
factor adicional é que esta História é pautada por mudanças cruciais nas
estruturas e nas práticas sociais. A existência também de momentos cíclicos
de festividade como a Grande Romaria, de dimensão regional, e festas
comunitárias, com especial incidência em lugares foram outros aspectos que
levaram o investigador a debruçar-se sobre a localidade de S. Torcato. Na
verdade, o autor assume que de S. Torcato retirou “apenas um conjunto de
práticas, instituições e acontecimentos” que tivessem em linha de conta a
chamada “cultura da praça pública”, na mesma linha de Mikaïl Bakhtine,
não porque a vertente privada não fosse de interesse sociológico, mas
porque o autor considerou que essa componente mereceria um estudo à
parte.
2.4 Triangulação metodológica: procedimentos técnicos e metodológicos de
base
O capítulo correspondente à enunciação e descrição das diferentes fases, métodos e
técnicas de pesquisa, foi apelidado pelo autor de “Localizar as vozes”, uma
designação feliz, uma vez que revela o cuidado em procurar as diferentes leituras
que diferentes intervenientes têm do facto social. Entende-se ser esta uma das
melhores formas de se encontrar uma “análise pluriperspectivada dos fenómenos
sociais” que o próprio autor considera como sendo a construção de um puzzle. No
itinerário conceptual proposto, uma investigação sociológica, histórica e
antropologicamente enriquecida, o autor adverte para a necessidade de este
caminho ser balizado pela reflexividade permanente e a este propósito explicita
como procurou cumprir a regra metodológica de controlar tanto quanto possível
as condições e os efeitos sociais dos processos de observação. Tendo como
ponto de partida de que nenhuma das técnicas convencionais da História,
Antropologia e da Sociologia “constitui uma solução válida em si mesma”, o
investigador optou por recorrer a várias técnicas de recolha de informação e
através da construção de um dispositivo coerente e integrado de fontes e
instrumentos de investigação, de uma combinação de “várias maneiras de olhar a
realidade social, através de várias lentes (materiais, registos, respostas,
actos)” (1994:491). Silva revela ainda que “o lugar de onde olhou para as
coisas, as pessoas e os actos foi sempre, estruturalmente, o da teoria”
(1994:490).
Em termos sociográficos este território estava marcado pelo declínio das
fracções ligadas à pequena agricultura familiar de subsistência (camponeses
puros), e pelas dinâmicas de proletarização industrial, enquadradas por estratégias
familiares de pluractividade.
2.4.1 Observação e entrevistas
O autor explica que o trabalho de campo consistiu na observação directa e
sistemática no local e da sucessão de romarias e festas comunitárias, mas também
das práticas de sociabilidade e as actividades colectivas no âmbito das associações
locais. Outro momento analisado pelo autor foi a campanha eleitoral de
1989.
As festas cíclicas foram um dos momentos privilegiados de observação no
período compreendido entre Verão de 1989 e o Verão de 1990. Tendo em conta o
tempo de observação e até a própria condicionante de não ter estado
presente diariamente na localidade estudada, Santos Silva, não reivindica um
conhecimento totalizante da realidade social. O autor assume ainda que o
facto de ao longo de dois anos ter falado com apenas 100 pessoas de uma
freguesia de 3500 habitantes não lhe dá a total e intensa perspectiva da
localidade.
No caso das entrevistas estas dividiram-se em formais a dirigentes
políticos e sindicais e alguns empresários locais, embora a generalidade dos
depoimentos usados tenha sido obtida em situações informais, quer através
de entrevistas não estruturadas ou semi-estruturadas quer em conversas
informais. Foram efectuadas 81 entrevistas, mais sete a personalidades
exteriores à vida local. O investigador optou por eliminar tudo o que
pudesse formalizar a comunicação (não gravando ou tirando apontamentos
em frente aos interlocutores, assumindo a extracção quase policial de
dados). A montagem do dispositivo de observação e entrevista no espaço
público local foi em bola de neve, uma opção por vezes considerada menos
rigorosa do ponto de vista estatístico, mas que em determinadas situações
“tornam-se indispensáveis na constituição da população a estudar” (Esteves, 2).
Devido às características do tecido associativo local e à própria estrutura
social da época ficaram sub-representados as mulheres e os jovens (actores
secundários).
2.4.2 Fontes documentais e iconográficas
Augusto Santos Silva recorreu a uma série de fontes documentais e a
algumas fontes iconográficas (pinturas e cartazes) como forma de melhor
conhecer a sociedade em estudo e a sua História. Para tal socorreu-se
de documentos de diversa índole, de arquivos com dados sociográficos e
estatísticas da região, a actas de assembleias da junta de freguesia, aos jornais
locais e regionais e alguma correspondência, tendo igualmente servido de
enquadramento a pesquisa e leitura de obras literárias e de outra índole onde S.
Torcato fosse referido e que ajudaram a situar a história dos espaços e das
festividades.
2.4.3 Reconstruir sociografias disponíveis
A partir de registos documentais disponíveis sobre as estruturas, as organizações e
as práticas sociais locais, recorrendo a inquéritos e recenseamentos, alguns
apresentando algumas ausências, o investigador deu-se conta da falta de
documentação válida. Nas associações existentes também encontrou poucos dados.
Na associação de escuteiros local encontrou uma categorização actualizada dos
membros, uma vez que tinha sido feito em 1988 um censo interno. Em
simultâneo aproveitou os dados de uma recolha de informação panorâmica
sobre o movimento associativo local. Como fontes laterais teve em conta a
imprensa local, nomeadamente, na recolha de informação que lhe permitiu a
reconstrução da história do grupo folclórico de S. Torcato, dados sobre
os festivais, recorreu ainda a mapas de frequência e resultados, a partir
das pautas de cada turma da Escola Preparatória, de forma a verificar a
continuidade da escolaridade; também procurou informação nos registos de um
levantamento dos artesãos locais no Instituto Português do Património e da
Cultura.
A análise dos processos políticos, nomeadamente as actas da Junta de
Freguesia (1969-1989), verificou ainda os dados eleitorais desde 1974 e conseguiu
obter mais alguns dados da categorização dos candidatos à assembleia da
junta.
2.4.4 Inquérito
Um dos aspectos frisados pelo autor como importante na prossecução do seu
estudo foi a parceria encontrada para a realização do inquérito. Na verdade, na
fase de pesquisa exploratória o autor teve como documentos:
- Arquivo Municipal de Guimarães encontrou um caderno eleitoral de
1945 que permitiu uma visão panorâmica da estrutura sócio-profissional
anterior às grandes mudanças de 1950;
- Recolheu dados do recenseamento de 1864;
- O recenseamento Agrícola de 1979 , onde obteve informações
estatísticas sobre a freguesia no qual foram identificadas 143
explorações agrícolas – 516 hectares. O autor teve ainda acesso
aos dados de uma investigação onde foi realizado um inquérito
por amostragem a explorações agrícolas onde foram inquiridas 30
explorações de S. Torcato (dados de 1988);
- O recenseamento da População e da Habitação, datado de 1981, e que
tinha apurado 3.491 residentes, 842 famílias e 761 alojamentos.
Como os dados de 1981 eram insuficientes, pelo menos na determinação das
categorias sócio-profissionais, o recenseamento agrícola era escasso, Santos Silva
teria que realizar um inquérito próprio. Nesta altura Guimarães estava a proceder
a uma categorização sociográfica exaustiva do concelho, na sequência
deste trabalho e em colaboração com o Centro Regional de Segurança
Social de Braga, procederam a uma candidatura ao programa de Luta
contra a Pobreza com o Projecto de Educação para o Desenvolvimento
(PED).
E a “convergência” de interesses entre o Projecto de Educação para o
Desenvolvimento, levaram a que Santos Silva se associa-se ao projecto em 1989. O
inquérito foi aplicado a 71 famílias, totalizando a informação de 359 indivíduos,
em S. Torcato.
No processo de construção da amostra Santos Silva preferia uma amostragem
por quotas, mas a opção foi pela amostragem aleatória e simples (tendo em conta
os interesses das duas partes e os recursos). Na prática, afirma o autor,
combinaram-se procedimentos de amostragem aleatória e por quotas. Ainda neste
processo de tentar localizar as vozes: o mapa disponível de distribuição
de habitantes não era fiável (não estava actualizado) e a designação de
lugares gerava confusão entre os entrevistadores e a população. Como
forma de controlo de enviesamentos seguiu-se a regra de itinerário aos
entrevistadores e a supervisão do mesmo foi competência do investigador. Silva
não deixa no entanto de salientar que “os «dados», resultados de processos
de construção de informação, dependem sempre das condições da sua
produção” (1994:491). O inquérito era longo, mas permitiu a captura de
uma informação vasta (e que não é na totalidade revelada pelo autor) de
caracterização da situação das famílias, aplicado no Verão e Outono de
1989 em S. Torcato, Gonça e Gominhães, com custos suportados pelo
PED.
3 Desigualdades
3.1 Operacionalização técnico-metodológica: virtualidades e vantagens,
dificuldades imprevistas, obstáculos a vencer e desafios para a exequibilidade da
trajectória traçada
Logo no início do livro, o autor revela o que não é o itinerário traçado nesta
investigação (Silva, 1994: 36). Deste modo, para o investigador o trabalho
desenvolvido nos finais da década de 80, inícios dos anos 90, do século passado não
teve a pretensão de:
- Ser uma nova versão evolucionista, representando a sucessão de cinco
planos;
- Ser uma maneira oculta de efectuar a partição do mundo social em
esferas ou subsistemas a que se atribui implicitamente o estatuto
ontológico próprio;
- Ser uma elaboração sofisticada da rotineira divisão do trabalho entre
Antropologia e Sociologia.
Ao evitar a “simplificação abusiva dos temas” que não lhe parecem uma “boa
alternativa” Santos Silva revela que pretende fazer uma análise cultural
pluriperspectivada de processos sociais, entendendo aqui o pluralismo no sentido
de testar as várias maneiras de entrar nos processos sociais, seguindo várias
abordagens de inteligibilidade. O autor tem como regra a complexificação,
pluralização e abertura dos quadros de sentido científicos a usar, mas também a
regionalização das referências substantivas a realizar, isto é a adaptação
de grandes quadros teóricos e de teorias de médio alcance à realidade
local.
Na prossecução deste processo Silva recorre, tal como afirma logo de início, a
modelos teóricos, e que servem de guia (ou de navio, termo usado pelo autor),
considerando desta forma que os modelos servem para transportar, isto é
funcionam como linguagens conceptuais (balizas teórico metodológicas e
sistematizações abstractas provisórias de resultados de investigações), que, no
entender do autor, são instrumentos imprescindíveis às decisões que concretizam
cada pesquisa. Ou como refere o autor as explicações são tentames para dar racionalmente conta de processos sociais, edificam-se pela combinação de modelos, numa aplicação que é adequação dos modelos às especificidades do objecto da explicação.
A missão do investigador é nesta linha de pensamento, assinalar caminhos,
pistas viáveis a trilhar, para avançar explicações que repousassem sobre a relação
sistemática e controlada das estruturas e das práticas sociais.
O autor sublinha ainda a necessidade da definição do problema, selecção de
hipóteses, recolha e tratamento de informação, interpretação – como sendo navios
construídos para serem testados e consistindo o teste em avaliar da sua utilidade
prática. Especificar os modos de produção e apresentação de interpretação
julgados mais adequados, delimitando assim algumas condições globais de
formação.
Das ilações que se podem retirar ao longo do livro destaca-se:
- Investigador não residiu na freguesia – o que não lhe permitiu uma
observação intensa e profunda características do método de observação
participante;
- Não conseguiu (tempo/recursos) analisar as condições e as observações
de trabalho; encontrou resistência dos actores e em especial dos
empregadores (condições práticas reais da estrutura organizacional);
- Treinado na pesquisa histórica teve dificuldade em adaptar-se ao
discurso flutuante dos entrevistados;
- Falou com menos de 100 pessoas de uma freguesia de 3500 habitantes
(baixo volume de informação recolhida);
- Faltou-lhe engenho e energia para contornar algumas ausências
(mulheres; mais tempo para se aproximar dos jovens e assim apreender
as suas perspectivas, horizontes);
- O autor assume que o dispositivo por si montado esgotou-se ao fim de
ano e meio no terreno e admite que acabou “preso na teia de relações
que contribuiu para urdir”.
3.2 Da rigidez à plasticidade operacional do conhecimento sociológico
Um dos aspectos retidos pelo investigador, corroborado em outros estudos, é o
considerável peso estrutural da organização eclesiástica e paroquial, uma reminiscência
do Estado Novo e da propaganda articulada entre dois campos: o político e o
religioso.
S. Torcato transformou-se numa encruzilhada não só pela
coexistência de várias realidades e situações, mas também pelos fluxos
de mão-de-obra, mercadorias e valores com a cidade vizinha, pelas
migrações e as respectivas ligações afectivas e económicas que dai
advieram.
O espaço vivido da aldeia de S. Torcato estruturava-se em: centro religioso, cívico
e de serviços do nordeste rural de Guimarães, sendo ainda, e em simultâneo, uma
placa giratória do que existia e de uma aldeia em mudança – os lugares
transformados em bairros, as casas alugadas, dissociação entre o espaço de
residência e o trabalho, o recuo do quintal, o reino doméstico da rádio e da
televisão, a aldeia com fábricas e oficinas –, em suma, S. Torcato era uma
aldeia em trânsito, mas numa circulação de curto alcance: casa-emprego,
emprego-casa.
Santos Silva arrisca na designação de uma pequena cultura popular uma vez
que no entender do investigador as práticas vigentes em S. Torcato organizavam-se
numa base regional, desenhavam fluxos de deslocações e comunicações de
curto e médio raio (saídas). Outro aspecto detectado pelo investigador é
que a estrutura organizativa do campo da pequena cultura popular se
assemelhava à entrada num campo em consolidação (jogo de posições e condições
hierarquizadas) que funciona como um autêntico mercado. O autor vai
mais longe ao referir que a articulação de múltiplas actividades de lazer e
recreio implantadas naquilo que apelida de no rés-do-chão da vida social
da freguesia se centrava em jogos, cantares, danças, festas, romagens e
folclorização.
Tendo em conta as declarações de alguns dos seus entrevistados privilegiados,
antes era o povo que fazia a festa, na década de 90 vários agentes se mobilizavam
no sentido de modernizar e adaptar a festa a um universo mais consumista.
Assim, o autor nota, também pela voz dos seus interlocutores, que a exterioridade
espectacular de actividades, catalisadoras de sociabilidade, entra em decréscimo
e que o padrão de recepção – fruição pública, colectiva e local – e de
envolvência festiva começa a alterar-se uma vez que a sua estruturação
crescente numa base organizativa requer em primeiro lugar formalização e é
percorrida por lógicas de funcionamento dos campos de competição entre
posições e de mercantilização da cultura. Todavia, importa ter em linha de
conta que quase todos os agentes culturais locais – mantêm uma estrutura
amadora – e entram no circuito mercantil através da permuta de serviços
ou da exigência de cachet. Neste mundo onde coabitam o passado vivo,
o passado presente, e a encruzilhada de tempos importa reter a “força
dinâmica própria” a “plasticidade da tradição” que a cada momento se
reactualiza.
Silva concluiu também que a introdução de produtos e valores das indústrias
culturais faz-se tardia e lentamente.
A integração pelo consumo em universos sociais de referência nacional traz
novos elementos complexificadores à encruzilhada de tempos e modelos
característica desta comunidade. O acesso à indústria do espectáculo e do lazer
encontrava-se severamente subordinado à lógica da programação radiofónica e
televisiva.
Importa também salientar a plasticidade da entidade eclesiástica ao longo do
tempo: se em alguns discursos analisados pelo autor (a partir de sermões e de
artigos de jornais paroquiais) inicialmente se advertia para os perigos da
emigração, que era vista como uma ameaça, foi a componente monetária dessa
emigração que revitalizou muitas das festividades e permitiu a manutenção de
algumas tradições, funcionando os contributos não só como consumo de
ostentação, mas acima de tudo como reintegração simbólica.
Importa ainda referir a existência de três eixos de mudança social, apontados
por Santos Silva:
- entrada na fábrica (tempos livres: férias e fim-de-semana);
- transformações nas referências éticas e ideológicas de reprodução social;
- emergência públicas de valores democrático-liberais.
E o investigador salienta ainda que, no que diz respeito à componente cultural,
existe uma limitação estrutural do acesso:
- Baixo volume da oferta cultural;
- Dificuldade do acesso físico (sem transportes públicos);
- A conquista do tempo livre;
- Melhoria dos níveis de consumo (extensão das despesas familiares);
- O capital cultural incorporado.
Um outro aspecto focado pelo autor no livro diz respeito à questão da
linguagem, ou melhor, o sentido que cada actor social dá a determinadas
palavras. Este é um dos aspectos sobre os quais cada investigador deve dar
especial atenção. Na verdade, neste contexto de análise o próprio conceito de
lazer era entendido de modo diverso pelo autor e pelos actores sociais da
localidade quando inquiridos sobre este aspecto da sua vida. O tempo livre foi
um novo dado social que surgiu em simultâneo com a entrada no mundo
fabril. Ignorava-se o entretenimento e os momentos de descontracção e
ócio.
Outra situação a ter em linha de conta é a ida à taberna e o jogar cartas, duas formas
de passar o tempo que são uma forma de entretenimento associado à plebe, uma
conjunto de pessoas bem diferentes das que faziam parte do povo, este mais
ordeiro, cumpridor das regras eclesiásticas e não dado a esse tipo de actividades
que quer o clero quer o Estado Novo não reconheciam como actividades bem
vistas.
Os momentos lúdico-expressivos por excelência eram as festas religiosas e as
romarias daí ter causado estranheza a colocação de uma televisão na sede dos
escuteiros.
3.3 Considerações finais: S. Torcato, uma comunidade na encruzilhada
Neste universo em trânsito misturam-se, mas sem se diluir por completo o
mundo rural com apontamentos de urbanidade; aquilo que Santos
Silva apelida de “vários mundos de um local”, a coexistência de outros
dois mundos como o campo e a fábrica, a própria demarcação dos
lugares e as respectivas diferenças sociais; a questão do tempo, que estava em processo de
mudança – estruturação/desestruturação ou como o autor refere: “Vários mundos
se cruzam, pois, em S. Torcato, consoante os pontos de inserção e os trajectos de
cada geração, família e grupo, nos tempos desta translação de estruturas
sociais (1994: 300), isto é vivia-se numa “encruzilhada de tempos sociais”
(414).
Outro ponto em movimento diz respeito ao espaço:
«Tempos e espaços cruzados, histórias e lugares. Na diferença
máxima entre os opostos – romarias camponesas e galeria
de arte contemporânea, arte manual do sapateiro e linhas de
montagem industrial, folclore e discotecas, milagres do Santo
e medicina oficial, velhos camponeses e jovens universitários -,
como se reconstroem experiências simbolicamente integradas,
como se propõe novos «textos», representações e jogos de papéis
apelativos?» (1994:481).
Estas “encruzilhadas” reportam-se a:
- Actores e grupos sociais estão situados em pontos de cruzamento de
tempos;
- Presenças sociais (directas ou indirectas – os presentes/ausentes, donos
de quintas ou fábricas de fora ou que já tinham deixado de ali viver);
- Capitalismo (consumo) e escola;
- Estado e cultura de massas;
- Várias configurações espaciais (a Romaria Grande é diferente do
quotidiano fabril e a cidade perto não entra no circuito de deslocações
físicas e simbólicas dos grupos mais vinculados ao campesinato);
- Media paroquiais (ponto de cruzamento entre as referências juvenis de
origem urbana e acção local).
Nesta vivência de culturas cruzadas verifica-se uma “intersecção de mundos”.
Ou como tão bem espelha o autor:
“à alegoria do trabalho do linho, com lavradores e tocata, se
seguiam as «sereias do parque», o busto realçado pelo bikini de
praia, e à figuração comovente de crianças erguendo a bola do
Universo, empunhando o futuro, o exorcismo violento do «pub
discoteca da morte», e à reivindicação dos progressos materiais
da irrupção plebeia do anti-clericalismo devoto” (1994: 481).
Em todo o estudo verifica-se o binómio: distinção-integração no que diz
respeito às classes, às condutas, ao consumo e ao estilo de vida (a conquista do
tempo de lazer) e, deste modo, a emergência de duas franjas sociais ou grupos
intermédios: de um lado está a geração herdeira do grupo dirigente local (que
vinha do povo) do outro o núcleo dos jovens filhos das classes populares
pluriactivas (com escolarização e acesso ao assalariamento industrial). Em 1990 os
lugares passam a ser diferentes: a abertura de uma pastelaria fina é disso
exemplo.
Por último, outro aspecto a ter em conta no trabalho de Santos Silva foi a
captação daquilo que o autor apelida de diversificação dos tempos, ou
melhor dos olhares que os diferentes intervenientes têm em relação a S.
Torcato. Assim, para os camponeses, a comunidade tinha-se transformado
num mundo marcadamente operário; aos olhos urbanos era um mundo
rural; visto de Guimarães era uma aldeia dormitório, periférica, enquanto
que, visto das freguesias vizinhas era um centro económico, religioso e
de serviços. Neste quadro de interacção o autor verifica que este “é um
local feito da formação e do cruzamento de vários mundos sociais” (1994:
297).
O trabalho aqui em análise resulta de um estudo de caso, foi realizada uma
interpretação desse mesmo caso tendo como fio condutor alguns resultados de
pesquisas, à altura, realizadas em território nacional. O autor termina
o livro revelando o uso intencional de quatro obras centrais: a análise
antropológica global da cultura camponesa expressa em “Sons of Adam,
Daugthters os Eve. The Peasent Worldview of The Alto Minho, de João de
Pina-Cabral (1986), Arraial: Festa de um Povo de Pierre Sanchis, um estudo
das romarias a a partir da vivência religiosa (1983), as dinâmicas sociais
de uma freguesia rural de Penafiel envolvida em processos de migração
popular patente em Estruturas Sociais e Práticas Simbólico-Ideológicas nos
Campos. Elementos de teoria e Pesquisa Empírica, de José Madureira
Pinto (1985) e Classes Sociais nos Campos de João Ferreira de Almeida
(1986).
Ainda de realçar que o autor confessa que à luz dos conhecimentos adquiridos no
processo desta investigação “uma diferente aplicação teórico-metodológica da
perspectiva analítica aqui proposta iluminaria dimensões igualmente relevantes na
configuração da cultura local” (1994: 511).
3.4 Síntese biográfica do autor Augusto Santos Silva (1956- )
Doutorado em Sociologia, especialidade de Sociologia da Cultura e da
Comunicação, pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa
(1992) e agregado em Ciências Sociais, pela Faculdade de Economia da
Universidade do Porto (1999), onde é docente desde 1981. Já foi pró-reitor da
Universidade do Porto. É licenciado em História, pela FLUP, 1978. Foi
colaborador da Página Cultural do Jornal de Notícias, de 1978 a 1986, mais tarde
colunista do jornalPúblico (1992-1999, 2002-2005) e cronista da TSF. Em termos
políticos foi deputado à Assembleia da República, pelo círculo eleitoral do Porto
(desde 2002), fez parte do XIV Governo Constitucional (1999-2002), primeiro
como Secretário de Estado da Administração Educativa (1999-2000), depois como
Ministro da Educação (2000-2001) e ainda como Ministro da Cultura
(2001-2002). É membro do Partido Socialista desde 1990 e faz parte da
Comissão Nacional, desde 1998. Actualmente é Ministro dos Assuntos
Parlamentares.
Principais publicações:
2006
- A Sociologia e o Debate Público: Estudos sobre a Relação entre Conhecer e Agir, Porto: Edições Afrontamento.
2002
- Por uma Política de Ideias em Educação. Intervenções no XIV Governo, 1999-2001, Porto: Edições Asa.
- Dinâmicas Sociais do nosso Tempo. Uma Perspectiva Sociológica, para Estudantes de Gestão, Porto: Editora da Universidade do Porto.
- Projecto e Circunstância: Culturas Urbanas em Portugal, organização,
em colaboração com Carlos Fortuna Porto: Edições Afrontamento.
2000
- Cultura e Desenvolvimento: Estudos sobre a Relação entre Ser e Agir,
Oeiras: Celta Editora.
- Públicos para a Cultura, na Cidade do Porto, em colaboração com
Felícia Luvumba, Helena Santos e Paula Abreu, Porto: Edições
Afrontamento/Câmara Municipal do Porto.
- La Política: Ensayos de Definición, em colaboração com Rafael
del Aguila, Paul Barry Clarke e Nicolas Tenzer, Madrid: Ediciones
Sequitur.
1999
- Parte Devida. Intervenções Públicas, 1992-1998, Porto: Edições
Afrontamento.
1997
- De que Vale Ter Poder? Crónicas no Público, 1995-97, Matosinhos:
Contemporânea Editora.
- Palavras para um País: Estudos Incompletos sobre o Século XIX Português, Oeiras: Celta Editora.
1996
- Textos Datados, com Motivo e Causa, Matosinhos: Contemporânea
Editora/Jornal Público.
1994
- Tempos Cruzados: um Estudo Interpretativo da Cultura Popular,
Porto: Edições Afrontamento.
1993
- Existe uma Cultura Portuguesa?, organização, em colaboração com
Vítor Oliveira Jorge, Porto: Edições Afrontamento.
1990
- Searas de Jeremias,Porto: Centro Regional de Artes Tradicionais,em
parceria com Helena Vilaça.
1988
- Entre a Razão e o Sentido: Durkheim, Weber e a Teoria das Ciências Sociais, Porto: Edições Afrontamento, (3a ed., 2001).
1986
- Metodologia das Ciências Sociais, organização, em colaboração com
José Madureira Pinto, Porto: Edições Afrontamento, (13a ed., 2005).
Bibliografia
-
- CARIA, Telmo H. (1997) Recensão crítica ao livro de Augusto Santos
Silva "Tempos Cruzados, um estudo interpretativo da cultura popular",
Porto: Afrontamento, 1994. Educação, Sociedade & Culturas, n.o 7,
187-196.
-
- ESTEVES, António Joaquim (1998) Metodologias Qualitativas,
perspectivas gerais, in Metodologias Qualitativas para ciências Sociais,
Instituto de Sociologia, Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
pp.1-8.
-
- GAUTHIER, Benoit (dir) (2003) Investigação Social. Da problemática à
colheita de dados, 3a edição.
-
- QUIVY, Raymond, CAMPENHOUDT (2003) Manual de Investigação em Ciências Sociais, Trajectos, Gradiva.
-
- SILVA, Augusto Santos (1994) Tempos Cruzados: Um estudo interpretativo da cultura popular. Porto, Edições Afrontamento.
-
- SILVA, Augusto Santos PINTO, José Madureira (orgs.) (1990) Metodologia das Ciências Sociais, Porto, Edições Afrontamento.
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