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Recensão por: Edmundo Cordeiro
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Contra a "pobre dramaturgia do fim e do retorno" nas artes, na política e no pensamento, que tudo cobre com a toalha do desencanto e do conformismo, e que, quanto às artes, as reduz à simples realidade das práticas e dos seus critérios de apreciação (querendo "libertar a arte do imperialismo estético" ou querendo "libertar a estética do imperialismo especulativo!" ["La forme et son esprit"], Jacques Rancière visa "restabelecer as condições de inteligibilidade de um debate". Por que é que a estética é o terreno onde se prossegue hoje uma batalha que incidia ontem sobre as promessas de emancipação e as ilusões e desilusões da história? Como é que podemos falar e compreender as relações da estética e da política? O que é que é designado com o termo estética? É pois necessário desentrançar um conjunto de noções, cuja principal é a de "modernidade", que misturam inteligibilidade e calendário: "noções que tomam a priori conceptuais por determinações históricas e que tomam recortes temporias por determinações conceptuais"...
Estética. A estética esse nome "bicentenário e ainda tão obscuro" ("Existe-t-il une esthétique deleuzienne?") é uma "ideia do pensamento", uma ideia que "nasce no tempo de Schelling, dos irmãos Schlegel e de Hegel como ideia do tipo particular de "pensamentos" que são as obras de arte" ("La forme et son esprit"). E que em Le partage du sensible é precisado nestes termos: a estética é um "regime específico de identificação e de pensamento das artes: um modo de articulação entre maneiras de fazer, formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modo de pensabilidade das suas relações, implicando uma certa efectividade do pensamento". Um modo de articulação. (Por conseguinte, este modo de articulação, este "regime estético" das artes, não é o regime das artes; ele permite, entre outras coisas, que a propósito das artes e dos seus produtos se fale em arte, no singular o que significa uma mudança do estatuto sensível da obra.) Esta articulação determina possíveis: opera aquilo a que Rancière chama uma "partilha do sensível" - determina o que se dá a sentir, o que é dado sentir-se. Aqui começa a política. E a estética, como "modo de pensamento", dirigindo-se à história, pensa esta partilha e é ao mesmo tempo um modo de efectividade desta partilha. Na base da política está sempre uma estética, quer dizer, uma "partilha do sensível": a política assenta numa "distribuição cénica découpage dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído, a qual define simultaneamente o lugar e o exercício enjeu da política como forma de experiência. A política incide sobre o que se vê e sobre o que se pode dizer do que se vê, sobre quem tem a competência para ver e a qualidade para dizer, sobre as propriedades dos espaços e os possíveis do tempo".
Partilha do sensível: "As artes só emprestam aos procedimentos de dominação ou de emancipação aquilo que podem emprestar, isto é, muito simplesmente, aquilo que têm de comum com elas: posições e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível. E a autonomia de que podem gozar ou a subversão de que podem atribuir-se assentam na mesma base". O fundo, o comum, é pois a mesma "partilha do sensível". A partilha do sensível determina um comum a partilhar e as partes exclusivas nesse comum. As "práticas estéticas", as "formas de visibilidade das práticas da arte, do lugar que elas ocupam, daquilo que "fazem" face ao comum", são politicamente derivadas também desta "estética primeira".
O que fazem o "teatro" e a "escrita" (alvo da proscrição platónica)? Vão confundir os espaços, a propriedade e as identidades: deslocam a partilha, instabilizam incessantemente a unidade do comum, o corpo uno da colectividade. (Não pode ser! Platão não aceita estas artes por querer determinar as artes politicamente, mas porque não aceita a política destas artes, a sua repartição do sensível o canto e a dança do comum, a "coreografia", será para Platão a boa forma.) Com isto temos as três grandes formas de partilha do sensível ("desdobramento do teatro"; "superfície dos signos pintados" ; "ritmo do coro dansante") pelas quais as artes são simultaneamente artes e "formas de inscrição do sentido da comunidade", maneira como "fazem política", independentemente da "doutrina" do artista ou do que rodeia o artista. (Rancière refere-se à postura aristocrática de Flaubert, que é uma coisa, e ao "testemunho de igualdade democrática" da sua obra, que não tem nada que ver com isso, e que assenta num partis pris poético: a igualdade de todos os assuntos - "esta igualdade destrói todas as hierarquias da representação e institui assim a comunidade dos leitores sem legitimidade, comunidade esboçada unicamente pela circulação aleatória da palavra (lettre)". Assim, na obra de um Céline, avulsamente partidário da unidade "fascista" e muito mais do que anti-semita teórico, encontramos uma das mais geniais génio, outro operador do "regime estético das artes" na medida em implique a "ignorância do que faz ou do que a natureza faz nele" ["La forme et son esprit"] - desintegrações estéticas de todo e qualquer "corpo" comunitário, inapropriáveis como referência num regime fascista.)
As relações destas três formas fundam a "politicidade do sensível". Uma "história da política estética" daria conta da oposição ou da mistura destas grandes formas, dado que, se estas formas são "portadoras de figuras de comunidade iguais a elas próprias", elas ligam-se também a "paradigmas políticos contraditórios". O modelo do "bom orador", por exemplo: enquanto "atributo imaginário da potência suprema" e ao mesmo tempo "disponível para retomar a sua função democrática".
Modernidade e regime estético das artes. Três grandes regimes da arte na tradição ocidental: regime ético das imagens em que a questão da arte ou das artes não se põe como tal, considerando-se o teor de verdade e a recepção das imagens em que é que a maneira de ser das imagens diz respeito ao ethos, à maneira de ser dos indivíduos e das colectividades; regime poético ou representativo das artes que isola algumas de todas as artes em geral, as imitações, e subtrai-as quer ao uso externo quer à verdade é internamente, pelo estabelecimento dos seus modos pragmáticos de ser (pelo seus factos o facto da arte no par poiesis/mimesis), que elas se definem «a grande operação efectuada pela elaboração aristotélica da mimesis» - a poiesis como regime de identificação e de apreciação das artes como tais, a mimesis como regime de visibilidade das artes ; regime estético das artes em que a arte não é arte por causa de uma poética particular mas por causa de um modo de ser dos seus produtos, por causa do seu regime sensível específico (o artista é artista malgré lui, seja artista ou não seja artista) - ideia de um sensível estrangeiro a si mesmo, sede de um pensamento que se tornou estrangeiro a si mesmo: a arte (um sensível autónomo insubmisso a todas as regras e a todas as hierarquias de temas e de géneros das artes), e não as artes.
Modernidade, em arte, não quer dizer grande coisa. Haverá um regime das artes propriamente moderno? Sim, talvez, mas isso não dirá absolutamente nada a partir do momento em que essa noção sirva para ocultar "esse regime particular e a especificidade dos regimes da arte" a partir de uma linha de ruptura entre o antigo e o moderno, entre o representativo e o não-representativo, sem curar de saber, mais uma vez, das formas de visibilidade das práticas da arte, do lugar que elas ocupam, daquilo que fazem relativamente ao comum
e, uma vez mais, sem curar de saber do modo de pensabilidade das suas relações. O que é próprio do regime estético das artes não é a oposição entre o antigo e o moderno, mas a oposição de dois regimes de historicidade (é no seio do regime mimético que o antigo se opõe ao moderno): inventa as suas revoluções na base da mesma ideia que o faz inventar o museu e a história da arte, a noção de classicismo e as novas formas de reprodução
e entrega-se à invenção de novas formas de vida na base de uma ideia do que a arte foi, do que a arte teria sido.
Agora que sumariamente respondemos com Rancière às três perguntas formuladas no início, vamos lá ver se compreendemos por que é que nos desentendemos La mésentente (título de uma das suas obras), o desentendimento, como princípio da democracia: Não penso a democracia como um estado social. Procuro pensá-la como uma forma de subjectivação política, derivando dos cortes, das disjunções que certas palavras efectuam relativamente à ordem natural da dominação (Casser lopposition des mots et des choses, in Libération, 5 mai 1998).
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