A
aventura de Miguel Littin, clandestino no Chile, por Gabriel García Marquéz
Ana Catarina dos Santos Pereira
Recensão crítica da obra.
Trabalho realizado para a disciplina
de Géneros Jornalísticos, no ano lectivo de 2001/2002.
“A
Aventura de Miguel Littin, clandestino no Chile” é um relato na primeira pessoa
de acontecimentos reais que têm como protagonista o realizador de cinema.
Exilado desde 1973, ano em que o então presidente Salvador Allende foi
assassinado e o general Augusto Pinochet instituiu o regime militar, regressou
clandestinamente ao seu país no Outono de 1985. O custo desta aventura era
evidente: o nome de Miguel Littin fazia parte de uma lista de cinco mil
exilados proibidos pelo governo chileno de regressar. Se fosse apanhado seria
certamente dado como “desaparecido”.
Depois de um trabalhoso processo de
transformação física (corte de cabelo e barba), duma mudança de sotaque, roupas
e forma de andar (uma vez que tinha agora de se parecer com um homem de
negócios uruguaio), entrou no Chile com passaporte e outros documentos falsos
sob a protecção de organizações democráticas que operavam na clandestinidade.
Dirigiu três equipas de cinema europeias (de Itália, França e Holanda) e seis equipas da resistência interna
chilena. O trabalho conjunto de todas elas originou mais de sete mil metros de
película - um filme de quatro horas para televisão e de duas horas para cinema,
denunciando a realidade de um país ao fim de 12 anos de ditadura militar.
Seis
meses depois de regressar novamente a Madrid, onde permanecia exilado, o
cineasta contou a sua aventura a Gabriel García Márquez. O escritor percebeu de
imediato que por detrás da película que Littin trouxera do Chile havia uma
outra história por contar, acerca de emoções e sentimentos, coragem e ideais
que nem sempre as imagens podem reflectir. Assim, o autor entrevistou Miguel
Littin durante quase uma semana: as dezoito horas de conversa gravada relatavam
todos os pormenores possíveis para reconstituir com fidelidade os
acontecimentos. Depois do tratamento do material recolhido preferiu manter o
registo na primeira pessoa, numa tentativa de preservação do tom pessoal do
realizador. Apenas alguns nomes foram alterados para não pôr em risco a vida
dos protagonistas que continuavam a residir no Chile.
A
obra final é, pelo método de investigação utilizado e pelo material recolhido,
uma reportagem. A originalidade deste caso, que pode pôr em causa a designação
jornalística do texto, é o facto de o jornalista não estar presente no local
dos acontecimentos (como é suposto acontecer numa reportagem) e também o de
narrar a acção na primeira pessoa. Ainda assim, os acontecimentos relatados são
verdadeiros e o narrador não tem qualquer margem criativa de manobra. O produto
final é resultado de uma exaustiva entrevista, o que faz com que não possamos
negar o carácter jornalístico deste livro.
A este respeito, o autor tem uma opinião própria, já que para si “A Aventura de Miguel Littin, clandestino no
Chile” ultrapassa a designação de reportagem. É antes “a reconstituição emocional de uma aventura cuja finalidade última
era, sem dúvida, muito mais íntima e comovedora do que o propósito original e
bem conseguido de fazer um filme zombando dos perigos do poder militar.”
Ao lermos a obra, temos ainda a nítida sensação de que
não podia ter sido escrita por outro jornalista uma vez que retrata uma América
Latina a que Gabriel García Marquéz também pertence e da qual conhece o passado
e o presente. A ideologia política de ambos nem sempre parece coincidir, mas o
respeito por valores como a democracia, a liberdade e a igualdade é uma
característica comum ao cineasta e ao escritor.
Na
obra são narrados factos muito curiosos acerca da estadia de Miguel Littin no
Chile, entre eles a missão que os seus filhos lhe delegaram no momento em que
se despediram no aeroporto: “o que
importa é que ponhas uma rabo-de-burro, bem comprido, a Pinochet”. Só nesse
momento pareceram tomar consciência de que aquele filme era real e perigoso e
que a história podia não ter um final feliz.
O
regresso ao Chile foi depois tão emotivo quanto decepcionante: “Em nenhum lado se via a militarização que
eu supunha nem o menor rasto de miséria”. Santiago, contrariamente às
informações que Littin obtivera durante o período de exílio, parecia naquele
momento uma cidade resplandecente, com auto-estradas iluminadas, monumentos e
ruas limpas, como nas capitais dos países mais desenvolvidos do mundo.
Tratava-se, segundo Littin “do esplendor
material com que a ditadura tentava apagar o rasto sangrento de mais de
quarenta mil mortos, dois mil desaparecidos e um milhão de exilados”.
Mas
o mais perturbador parecia ser o silêncio nas ruas, após o recolher
obrigatório. Um silêncio solitário, melancólico, que traz à memória uma manhã
sangrenta em que tanques de guerra, helicópteros e soldados mataram inocentes e
bombardearam o palácio de La Moneda,
sede do governo de Salvador Allende.
A
descrição de crimes violentos contra os que se opunham à ditadura é uma
constante ao longo da obra. A detenção do sociólogo José Manuel Parada,
funcionário da Vicária (bastião contra a ditadura) na presença dos filhos, em
frente à escola onde estes estudavam, é uma delas. O seu corpo seria encontrado
três dias depois num caminho isolado, apresentando sinais de tortura. A
barbaridade deste crime fez com que a praça onde o sociólogo fora detido se
passasse a chamar, entre os populares, Calle
de José Manuel Parada. Uma história semelhante à da Plaza Sebastian Acevedo, assim secretamente denominada pelos
habitantes de Concépcion (uma vila a poucos quilómetros de Santiago) porque
dois anos antes do regresso de Miguel Littin ao Chile, um mineiro ateou fogo a
si próprio nesse local. O suicídio público foi realizado após inúmeras
tentativas junto de membros da Igreja, jornalistas, líderes de partidos
políticos, grandes comerciantes e industriais, para que a Central Nacional de
Informação (CNI) não continuasse a torturar o seu filho de 22 anos e a sua
filha de 20, detidos por porte ilegal de armas. As súplicas de Sebastian
Acevedo não foram ouvidas. No dia por ele marcado como prazo limite para
libertação dos filhos nada tinha sido feito, e o mineiro cumpriu a ameaça: no
adro da Igreja derramou sobre si uma lata de gasolina com a qual se incendiou,
de nada tendo valido os pedidos de calma dos habitantes que assistiam.
A
crise económica que o país vive é também descrita na obra: uma senhora sentada
num banco de jardim felicita Miguel Littin por ser uruguaio e diz que há fome
no seu país, ao mesmo tempo que vai mostrando ao cineasta outros bancos de
jardim com médicos e engenheiros desempregados, palhaços, músicos e travestis
com ar de quem lamenta a falta de liberdade individual e artística.
O número de vendedores ambulantes é assustador: crianças órfãs tentam
vender produtos roubados, enquanto grandes comerciantes e industriais de
outrora esforçam-se agora por vender as suas roupas e o pão que cozinham em
casa. As populações que vivem nas margens do rio Mapocho disputam com cães e
abutres os desperdícios de comida atirados dos mercados populares para o rio.
São, segundo Miguel Littin, os resultados da desnacionalização de tudo o que
Salvador Allende havia nacionalizado, levada a cabo pela Junta Militar com o
apoio dos Estados Unidos. Na opinião do cineasta, o país foi vendido ao capital
privado e às multinacionais. Como sublinha, a dívida externa do Chile que, no
último ano de Allende era de quatro mil milhões de dólares, em 1985 atingiu os 23
mil milhões. “O milagre militar tornou
mais ricos muito poucos ricos e tornou mais pobres o resto dos chilenos”.
Ainda
assim, há rasgos de esperança: os jovens namorados que passeiam nas margens do
rio e se amam debaixo de uma ponte, ou que visitam a casa de praia de Pablo
Neruda, mantendo viva a memória do poeta são mencionados por Littin com ternura
e admiração. Na cerca da casa escrevem mensagens que a ditadura não conseguiu
apagar: “O amor nunca morre”, “Allende e
Neruda vivem”, “Não é um minuto de treva que nos fará cegar”.
Outro forte incentivo para o cineasta
conduzir o seu projecto foi precisamente o reconhecimento de que a
memória de Salvador Allende ainda continuava viva nas populações chilenas. O
misticismo criado à volta da sua memória era enorme e, por entre os populares
com quem Littin contactou, havia sempre alguém a quem o ex-presidente havia apertado
a mão, apadrinhado um filho ou encontrado um emprego. Os objectos por ele
tocados eram conservados como relíquias, “toda
a população o conhecia em carne e osso. Ao contrário de tantos políticos que só
foram vistos na imprensa ou na televisão ou ouvidos na rádio, Allende fazia
política dentro das casas”. A população nunca diz o seu nome: referem-se a
ele como “o Presidente”, como se não
tivesse nunca deixado de o ser, ou como se continuassem a esperar o seu
regresso.
Quanto
ao final da narrativa, já havia sido revelado no princípio do livro, o que faz
com que o seu interesse resida sobretudo na descrição do tumulto e das emoções
vividos por Miguel Littin, sobretudo no momento em que viu de perto o ditador
Pinochet e necessitou de mostrar um grande controlo emocional. Neste caso, o
livro e o filme são visões distintas e insubstituíveis da mesma aventura.
Na
minha opinião, A Aventura de Miguel
Littin, clandestino no Chile é a confirmação do valor de um escritor como
Gabriel García Marquéz e da coragem de um cineasta como Miguel Littin. A
valorização de ideais pelos quais ainda é necessário lutar, como a liberdade e
a dignidade humanas.
Entrevista ao realizador Miguel Littin
Falar de Miguel
Littin é falar de História viva e de um profundo compromisso social. Dos 59
anos de idade do cineasta chileno, quase 20 foram passados no exílio a que foi
condenado pelo regime ditatorial de Pinochet. Por ser director da produtora Chile Films, por ter realizado obras
como El Chacal de Nahueltoro onde
denunciava as injustiças sociais do seu país e ainda por ser apoiante do
presidente Salvador Allende, viu o seu nome constar de uma lista de cinco mil
exilados cujo governo não permitia regressar ao Chile.
No dia da tomada de poder pelo general Augusto Pinochet escapou por
pouco a ser levado para o Estádio Nacional de Santiago onde certamente seria
torturado até à morte. Graças à ajuda de um sargento que fingiu não o
reconhecer pôde fugir com a sua família para o México e mais tarde para
Espanha.
Doze anos depois,
Miguel Littin não conseguia esquecer aquela manhã sangrenta de 11 de Setembro
de 1973 em que tanques de guerra, helicópteros e soldados mataram dezenas de
inocentes e bombardearam o palácio de La
Moneda, sede do governo de Salvador Allende. Regressou então ao Chile,
desta vez clandestinamente, com passaporte e outros documentos falsos, fazendo
passar-se por um homem de negócios uruguaio. O processo de transformação física
que teve de enfrentar foi bastante trabalhoso, até ser capaz de disfarçar por
completo algumas das suas principais características que o poderiam denunciar
(o riso, a forma de andar ou a barba).
Durante seis
semanas conseguiu dirigir três equipas de cinema europeias e seis da
resistência interna chilena. O trabalho conjunto de todas elas originou um
filme de quatro horas para televisão e de duas horas para cinema onde se
denunciam os efeitos sociais e económicos da ditadura militar.
Clandestino no Chile é a narração, na
primeira pessoa, desta aventura, ou o resultado de uma entrevista exaustiva do
escritor Gabriel García Marquéz ao protagonista, numa reconstituição do tumulto
e das emoções vividas por Miguel Littin durante aquelas seis semanas. É uma
história de coragem, onde se valorizam ideais como a liberdade e a dignidade
humanas.
Foi precisamente a leitura desta narrativa que me fez
procurar outros dados biográficos sobre a vida de um homem que arriscou tudo
para denunciar a violência dos crimes militares no seu país. Para tal,
dirigi-me à embaixada do Chile em Lisboa e obtive o número de telefone da
residência de Miguel Littin em Santiago. Passados três dias consegui falar com
o cineasta, que imediatamente se disponibilizou a conceder-me uma entrevista
via e-mail. Deixei sempre claro que
não era uma jornalista profissional, mas apenas uma estudante do terceiro ano
de Ciências da Comunicação. O meu reduzido curriculum pareceu sensibilizá-lo e passado um mês obtive as tão desejadas respostas.
Nas conversas que tivemos por telefone
tive oportunidade de lhe revelar o quanto admirava a sua coragem. Respondeu-me
sempre com uma simpatia que parece própria do povo chileno e com uma modéstia
muito pessoal: “Apenas fiz o que tinha de ser feito”.
Um herói do cinema, com uma história
muito real.
Escolheu o cinema como profissão por ser um meio de expressão
dos seus valores e ideais?
O cinema é um meio de expressão vivo e quente, de reflexão e
paixão ao mesmo tempo, onde realidade e ficção se encontram para que delas
possa nascer a verdade.
Como descreveria a situação política e social do Chile
durante o governo de Salvador
Allende?
Como uma
revolução amistosa, muito lúdica, que acreditava nos heróis depostos, uma
verdadeira utopia.
Como se sentiu no momento em que viu o seu nome numa lista
de cinco mil exilados que não poderiam jamais regressar ao Chile?
Primeiro com uma profunda indignação e depois com uma pena
enorme.
Durante o
período de exílio continuou a realizar filmes e a escrever livros?
Sim, continuo com o meu trabalho no exílio.
Em que
momento do seu exílio decidiu que voltaria ao Chile para realizar este filme?
Quais foram os seus principais objectivos?
Quando me dei
conta de que, como cineasta, devo assumir uma responsabilidade histórica.
Entrei no meu país para filmar com o coração, debaixo dos narizes da monstruosa
ditadura. Queria ter o meu próprio ponto de vista sobre esse Chile suprimido
pela repressão.
Para
regressar teve que se transformar num homem de negócios uruguaio. Enfrentou um
processo de transformação física muito complicado...
Foi um processo de personificação... não esqueças que
estudei teatro. Claro que se me apanhavam as coisas tornar-se-iam muito sérias.
Na obra de
Gabriel García Marquéz que narra a sua aventura faz algumas referências aos
jovens do seu país - uns que se amam debaixo de uma ponte e outros que mantêm viva
a memória de Pablo Neruda visitando a sua casa de praia. Estes jovens
fizeram-no acreditar que o amor continuava a existir no Chile, mesmo com uma
repressão ditatorial tão forte? Deram-lhe forças para levar o seu trabalho até
ao fim?
A juventude real
e a juventude de espírito é a que te permite sempre seguir com esperança e te
dá força para acreditares no futuro que vais construindo todos os dias.
Ficou muito feliz quando percebeu que, no Chile, persistiam
duas memórias que a ditadura não conseguia apagar - a do poeta Pablo Neruda e a
do presidente Salvador Allende...
Bom, o que esses
dois grandes homens nos deixaram dá-te muita força interior para realizar o que
quer que seja... eles não morreram em vão!
Quando regressou clandestinamente sabia que não devia falar
com as pessoas que lhe estavam mais próximas. No entanto esteve com a sua mãe,
como foi voltar à sua casa de infância e voltar a vê-la?
Foi uma emoção
que é muito difícil expressar em palavras... a única forma que encontro para
expressá-la é através dos meus filmes.
Teve momentos
muito emotivos em que quase pôs fim ao secretismo que esta missão exigia...
Sim, houve
momentos assim. É muito difícil desdobrar-nos desta maneira, mas também tive de
pensar nas pessoas que estavam comigo e que me apoiavam.
Os seus
filhos, quando se despediram de si no aeroporto e se aperceberam de que esta
era uma aventura verdadeiramente perigosa, disseram-lhe que o mais importante
seria que pusesse um “rabo-de-burro” bem comprido a Pinochet. Sente que cumpriu
a missão que eles lhe incumbiram?
Esse pobre ser
já pertence ao passado, um vergonhoso passado, já não vale a pena referir-se a
ele.
Disse
anteriormente, noutras entrevistas, que o México é a sua outra pátria e que
estar exilado ali o fez sentir-se mais do que chileno, mas sobretudo
latino-americano.
O México é um
lugar realmente especial onde te encontras e reencontras com o teu próprio
ser... É uma força, uma maneira de ver a vida trágica e lúdica ao mesmo tempo,
com cor e morte, com sol, tequilla e terra... Tanta coisa, que acredito
que isto se trate da essência dos povos latino-americanos.
Disse também que “quando um dirigente político ou um senhor
presidente chega ao poder aplica a autocracia e não a democracia”. Não acredita
que finalmente a democracia tenha sido implantada no Chile?
Neste momento é
difícil falar de imposições num mundo globalizado, existem acordos,
negociações, consensos,... No Chile chegou-se a um acordo e creio que esse tem
sido respeitado, para o bem e para o mal.
Como caracteriza a actual situação económica chilena?
Em termos numéricos está bem, mas em termos sociais reais é
injusta e mentirosa. Existem grandes diferenciações sociais, uma brecha
demasiado grande entre os distintos sectores da sociedade.
Acredita
que é um espelho do que se passa na restante América Latina?
Penso que o Chile é um caso
bastante especial.
Neste momento, se tivesse hipótese de filmar outras injustiças sociais
que o restante mundo insiste em não conhecer, como se passava com o Chile, que
injustiças seriam essas?
O que se passa com o povo Palestino.
Esse é o seu próximo projecto?
Sim, chamar-se-á “La Ultima Luna”.