|  | Recensão por: João Carlos  CorreiaUntitled Document
HANNAH ARENDT: NOSTALGIA E MODERNIDADE Seyla Benhabib, The reluctant modernism of Hannah Arendt, Londom Thousand Oaks, New Delhi, sage Publications, 1997, 284 pp. Uma ideia central começou a desenhar-se nalguns estudiosos de Hannah Arendt: apesar do seu trabalho conter algumas intuições importantes no domínio da deliberação 
    democrática, como sejam o conceito de esfera pública e de juízo, a autora é sobretudo uma nostálgica, uma teórica saudosa da polis grega e da sua glória 
    perdida. A modernidade resume-se a um processo de dissolução generalizada do espaço público. Seyla Benhabib, filósofa e Professora de Harvard compreende a acusação 
    mas nunca chega a subscrevê-la: se a principal prova desta tese é o fabuloso The Human Condition, a resposta de Benhabib é um descentramento da posição que esse livro 
    ocupa, buscando o papel que ele ocupa na totalidade da obra de Arendt. Esse descentramento não significa uma perda da sua posição fundamental mas a sua inserção na 
    totalidade da obra. Para Benhabib, o esforço de descentramento constitui um pressuposto metodológico, graças ao qual Arendt, em numerosas questões deve ser interpretada a 
    partir das margens, de textos secundários e até de notas de roda-pé. Finalmente, importa detectar as tensões que se desenham o interior do trabalho filosófico de Hannah 
    Arendt e que, aos olhos de Benhabib, passam por um diálogo com os pensamentos de Heidegger e Karl Marx.
 Este esforço de Benhabib no sentido de devolver Arendt à modernidade não é isento de uma análise das contradições e tensões do seu pensamento: 
    The Human Condition é, de facto, a apresentação da sociedade moderna e das transformações sofridas pelas sociedades ocidentais em termos de uma análise do declínio 
    da esfera pública em detrimento da emergência de uma esfera social de actividade económica e dominação burocrática. Alguns dos traços desta descrição 
    são susceptíveis de uma comparação com essa imensa narrativa do declínio que é a obra de Adorno (como Arendt, que detestava a pessoa de Adorno, reagiria a esta 
    comparação!) e, principalmente, com o primeiro grande livro de Habermas, Mudanças Estruturais da Esfera Pública, o livro onde ainda ressoa de modo mais nítido a herança 
    da Escola de Frankfurt e a leitura explícita de The Human Condition, publicado pouco tempo antes e objecto de uma apreciação de Habermas. Porém, a narrativa de Arendt nunca 
    passa pela existência de promessas incumpridas na modernidade. A modernidade não é mais do que uma negação de todas as promessas realizadas no espaço público 
    grego.
 Porém, se essa é a linha dominante de The Human Condition, a tese de Benhabib é a de que nada implica que seja por esta árvore, frondosa e rica que seja, que tenhamos que 
    fazer uma apreciação da totalidade da floresta. A autora de The Origins of Totalitarism e Rahel Varnhagen analisou de modo claro e lúcido o anti-Semitismo das Sociedades Europeias 
    e identificou, nestas obras, uma tensão clara no interior da própria teoria dos direitos humanos entre a igualdade política universal e a diferença social, cultural, racial 
    e étnica. Ou seja, a modernidade era afinal um processo rico em contradições.
 A obra de Benhabib desenvolve-se ao longo de alguns passos fundamentais: primeiro, ao longo de três capítulos, procede-se à análise de Rahel Varnhagen: The Life of a Jweish 
    Women, a biografia de uma judia alemã culta, correspondente de algumas das principais figuras do romantismo (Humboldt, Schleger, Scheleiermacher, Jean Paul, Hegel e Heine frequentavam os seus 
    salões) e as consequência da sua estranheza e alteridade social, cultural e, talvez, psicológica, no interior de uma sociedade burguesa conformista. Esta descrição 
    minuciosa da alteridade e da estranheza é o pretexto para uma reflexão sobre as questões da identidade judaica, designadamente as próprias experiências de Arendt na 
    sua condição de judia alemã. Estas reflexões irão persisitir ao longo da sua vida nomeadamente na escolha política entre a formação de um epaço 
    social e político susceptível de reunir os judeus que se identificavam com determinados princípios em torno de uma comunidade e a criação de um Estado Nação. 
    Apesar de Harendt ter relações conhecidas com o movimento sionista e defender a política de colonatos na Palestina, pronuncia-se pela primeira opção. Porém, 
    a descrição deste universo minucioso e de certo modo, asfixiante é pretexto para uma análise subtil sobre as questões da identidade, alteridade e integração. 
    Este é talvez o exemplo mais conseguido de como Benhabib procura efectuar o seu descentramento interpretativo: através de um texto periférico na obra de Harendt, Benhabib aproxima-se 
    com subtileza das questões da identidade e da identidade feminina, não hesitando em fazê-lo através de uma autora conhecida por uma enorme desconfiança em relação 
    às questõe do privado, por uma profunda separação entre público e privado, e até por uma alegado reaccionarismo em relação ao movimento feminista, 
    patente nalgumas das primeiras páginas de The Human Condition. Benhabib não pretende fazer saltos no escuro. Invocando uma admiração longínqua e prolongada por uma 
    autora que parece completamente arredia da sua própria dentidade filosófica - a Teoria Crítica - Benhabib avança com cuidado e não se limita a vislumbrar o que desejaria 
    ver nos escritos de Arendt ou a fazer uma interpretação da obra à luz da admiração pelo personagem. No caso de Rahel Varghein, Benhabib intu, presente e confirma as 
    suas conclusões. Aquela biografia sobre uma judia convertida por razões de conveniência do marido - uma pária - é a biografia centrada no problema da identidade e na 
    vivência quotidiana da identidade.
 Na segunda parte da obra, que se centra em The Origins of Totalitarism, a universalista e judia - de tradição europeia, pela sua origem no judaísmo hispânico - Seyla Benhabib 
    confronta, de modo mais claro, através da menos universalista e igualmente judia Hannah Arendt, as questões da identidade e do particular e do universal. Quem conhece Benhabib não 
    apenas como comentadora competente da filosofia alheia, sabe que o seu trabalho constitui uma tentativa de compreensão e aprofundamento da Teoria Social Crítica, de um modo que inclua 
    a vida concreta, a experiência da vida, a qual, normalmente, é relegada para as esferas sombrias da domesticidade. Para este percurso, contribui o seu compromisso com uma certa leitura 
    da condição da mulher que não se traduz nas formas mais radicais de feminismo - no seu sentido particularista mais "agressivo"- mas passa por uma tentativa de equação 
    desta condição particular com a universalidade. The origins of totalitarism é, aos olhos de Benhabib, mais uma demonstração da importância de Harendt para uma 
    análise das questões da identidade. A destruição dos grupos de referência e a emergência da sociedade de massa é, na verdade, uma das principais causas 
    do totalitarismo. O desaparecimento do indivíduo na multidão como resultado do seudesenraizamento assim como a destruição da memória abrem as portas ao aniquilamento 
    individual,
 A terceira parte da obra debruça-se sobre The Human Condition. Aqui Benhabib ultrapassa as leiturais mais tradicionais para se reencontrar, através de Harendt, com Heidegger identificando 
    a forma especial de ser-no-mundo que é ser-com-os outros, com a experiência da pluralidade como fundamento da condição humana. Nesse sentido, apesar da importância que 
    ganham categorias heideggerianas de "Mundo", "Ser-no-mundo" e "Mit-sein", esta última perde, diz Benhabib, a sua significação de existência inautêntica 
    para passar a significar o mundo com outros que se apresentam iguais a nós próprios e, todavia, diferentes. Um dos mais importantes conceitos que fará ainda ressonância em 
    Marcuse é o da acção humana (praxis) no seio da polis, a qual é objecto de uma análise que incide numa especial enfatização dos meios utilizados. A propósito 
    deste conceito de acção Benhabib, com o auxílio de Maurice Passerin d'Entrèves, fala mais uma vez do dualismo arendtiano, susceptível de ser discernido na diferença 
    entre um modelo expressivo e um modelo comunicativo de acção. A acção comunicativa é orientada pela busca do entendimento e é caracterizada pela igualade e 
    reciprocidade entre sujeitos reconhedidos como iguais. A acção expressiva, por outro lado, centra-se na auto-realização da pessoa e rege-se peloe reconhecimento e carácter 
    único do self e das suas capacidades por outros. Quando modelo de acçaão arendtiana se centra neste último, a acção é vista como o desemepnho de actos 
    notáveis por pessoas extraordinárias. Quando diz respeito ao primeiro a acção centra-se no processo colectivo de deliberação e de tomada de decisão fundado 
    na igualdade e na soliedariedade. Benhabib porpõe que se substitua esta conceptualização por uma outra em que o modelo narrativo de acção se opõe ao modelo 
    agonístico. Enquanto este último se centra na revelação de uma interioridade, o primeiro é um modelo construtivista que se funda na invenção de uma história 
    pessoal construída na companhoa de outros, através dos actos e palavras com que nos comprometemos.
 Nos últimos capítulos, Benhabib propõe uma reaproprição de algumas intuições de Arendt no que respeita às relações entre público 
    e privado. Este percurso já fora iniciado, de facto, em Rahel. O salão burguês onde Rahel consegue chegar ao mundo que lhe era negado pela sua condição de mulher e 
    de judia eram locais onde se vivia uma certa fraternidade cívica e aproximavam-se do modelo de esfera pública tal como esta viria a ser descrito por Habermas. O ideal de universalidade, 
    o prazer da conversação eram traços típicos de uma certa liberdade que Rahel não vivia noutros momentos. Porém, tal como a categoria de espaço público 
    é explicitamente pensada em The Hiuman Condition este passo é um passo que Benhabim assume como um risco interpretativo. Com efeito, o espaço público celebrado em Human Condition 
    parece ser o espaço agonístico onde ganham especial significado os feitos únicos dos homens livres. Porém, esse espaço público parece eclodir na sua separação 
    cortante quanto Arendet se refere a esses momentos decivos e raros em que a classe operária, fora da influência das ideologias e partidos políticos oficiais demonstra as suas próprias 
    ideias sobre as possibilidades de aprofundamento democrático: a Comuna, a República dos Concelhos, a Revolta dos marinheiros de Konstradt. Aqui Arendt, surpreende a latência de um 
    novo espaço público.
 Curiosamente, se a modernidade de Arendt é relutante aos olhos de Benhabib, essa reluntância não é para esta moderna, fonte de embaraço especial, apesar das discordâncias 
    visíveis: essa relutância inscreve-se numa suspeita, numa espécie de rejeição das adesões incondicionais que se veio a revelar arguta e, de certo modo, profética.
 João Carlos Correia
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