|
Recensão por: Artur Alves
O Pragmatismo, de John Murphy: Recensão Crítica
Murphy, John P. – O
Pragmatismo: de Peirce a Davidson, Lisboa, ed. Asa, 1992. Introdução de
John Rorty. Tradução de Jorge Costa (or.: Pragmatism: from Peirce to
Davidson, Westview Press)
Autor da recensão: Artur
Alves
1.
Introdução
O livro de que se trata neste trabalho é
da autoria de John P. Murphy, professor de filosofia da norte- americana Trinity University. Foi
publicado no Estados Unidos da América em 1990, pela Westview Press, sob o
título de Pragmatism: from Peirce to Davidson e, em Portugal, traduzido
por Jorge Costa, viu a luz do dia pelas Edições Asa no ano de 1992. O título
completo é: O Pragmatismo: de Peirce a Davidson.
Trata-se, no contexto das universidades
americanas, de uma obra de introdução muito divulgada e apreciada, uma visão
muito actual e concisa de uma importante corrente de pensamento que não obteve
ainda, no ver de Richard Rorty, o merecido reconhecimento académico no Velho
Continente – contudo, nos EUA é possível perceber a influência desta filosofia
nos departamentos universitários. A obra em questão é, aliás, recomendada por
diversos professores de Filosofia - o que nos é dado a ver em qualquer pesquisa
aprofundada na Internet – como essencial para uma compreensão global do
pragmatismo americano.
Richard Rorty, na introdução intitulada
«Pragmatismo como Anti- Representacionismo», salienta desta obra a visão global
do trabalho dos filósofos pragmatistas, em torno de uma “luta”, que se impunha
nos finais do século XIX e princípio do século XX, contra as correntes mais
fundamentalistas do positivismo lógico e daquilo que abordaremos mais à frente
e que Peirce designou como «cartesianismo». Esta crítica é vista, aliás, não
como uma chamada de atenção para algo de radicalmente novo, mas como a análise
e reavaliação dos princípios metafísicos e científicos que remontam a momentos
tão díspares como a Grécia Antiga e Descartes.
Esta curta recensão, tal como o próprio
livro, que por seu lado reflecte a evolução do objecto de reflexão do
Pragmatismo, vai incidir sobretudo em dois momentos: as teorias do conhecimento
de Charles Sanders Peirce e William James; e a reflexão sobre a acção
científica e a linguagem de Dewey, Quine e Davidson. As posições de cada um
destes pensadores são, ao longo do livro, observadas sob o ponto de vista dos
escritos e interpretações dos respectivos discípulos, quando não é deixada a
uma citação de um texto do próprio filósofo a função de clarificar a complexa
rede de conceitos e reflexões.
2.
C. S. Peirce e William James na visão de
Murphy
Daniel J. Boorstin, reflectindo sobre a
influência de Kierkegaard sobre William James, afirma que existe uma diferença
de princípio entre a corrente existencialista e pragmatista: «Um indício da
diferença entre o temor existencialista e a esperança pragmatista residia nas
respectivas formas de pensar a corrente da experiência quotidiana, nas formas
de procurar o sentido da vida.»[1]
.
Mais do que pôr em contraste as duas correntes, temos aqui um indicador do
carácter inovador do pensamento pragmatista, cujo grande iniciador é, claramente,
Charles Sanders Peirce, embora influenciado (não linearmente) pelo utilitarismo
de Jeremy Bentham.
C. S. Peirce é praticamente um cientista,
um conhecedor profundo das ciências naturais e suas metodologias. Nasceu em
1839 em Cambridge, Massachussetts; o seu pai era professor de matemática e
artronomia na Universidade de Harvard. Desde muito novo esteve, portanto, em
contacto com a realidade das ciências exactas, mas também com a filosofia,
através do estudo de Immanuel Kant. Em 1855 entra em Harvard e, a partir de
1868, junta-se ao combate anti- cartesiano encetado por Chauncey Wright e o seu colega Frank Abbot.
Começa por criticar o tão cartesiano
conceito de ideia como objecto do entendimento, observado interiormente como se
de algo de exterior se tratasse. No seu conhecido ensaio «Questions Concerning
Certain Faculties Claimed for Man», Peirce nega a possibilidade de
introspecção, referindo que tudo o que nós conhecemos foi adquirido pela
observação de factos externos, o que invalidaria a possibilidade de um só homem
poder colocar em questão coisas que, claramente, dizem respeito a toda a
Humanidade. Obviamente, nada há que nos diga que as nossas ideias tenham
correspondência no mundo exterior à nossa mente; no entanto, Peirce ataca a
própria ideia de tal género de correspondência, o que não deixa de ser muito
relevante, para além de revolucionário. Descartes - e grande parte da tradição
filosófica posterior – considerara irrelevante todas as ideias que não fossem
claras e distintas, pensando ser necessário para essa “purificação” instituir
uma «dúvida universal» que nos permitisse a libertação de todas as noções
erróneas. No fundo – e também isto Peirce virá a criticar - há um apelo à
dúvida total relativamente ao mundo, o que conduz a um cepticismo exacerbado
que, decerto, não é intelectualmente aceitável. Principalmente na visão de
Peirce, que afirma que deve haver uma razão para duvidar de algo, de modo a
verificar se tal dúvida tem razão de ser. O que acontece é que, quando algo
ocorre e põe em causa uma crença do indivíduo, aparece a dúvida, que importa
eliminar através do inquérito de modo a re- estabilizar o “sistema de crenças”.
A dúvida universal não é produtiva, porque
(1) dificilmente alguém se pode libertar completamente de seus preconceitos e
crenças prévios para encetar uma investigação; (2) investigar e filosofar a
partir de uma dúvida artificial não é racional, i.e., quando colocamos algo em
causa deste modo não temos uma razão efectiva para o fazer – mero cepticismo;
(3) duvidamos de algo porque esse algo já existia previamente na nossa mente, o
que nos conduz a uma pequena investigação para confirmar a razão de ser dessa
dúvida – e se, e só se, essa razão for confirmada a dúvida dá lugar a
descrença. A dúvida não dá orientação para a acção, o que é essencial, uma vez
que as teorias pragmatistas afirmam a inerência da acção à crença (ou seja, a
crença é algo a partir do qual agimos e que construímos a partir da nossa acção
no mundo). Peirce condensa tudo isto afirmando: «Não finjamos duvidar, em
filosofia, daquilo que não duvidamos em nossos corações.»[2]
.
Ainda no seguimento desta crítica ao «espírito do cartesianismo» na perspectiva
peirceana do «espírito do experimentalismo», encontramos uma negação da
capacidade individual de decidir acerca da verdade de uma ideia. Se Descartes
afirma que a certeza é como uma decisão individual, o pragmatista considera
que, deste modo, qualquer pessoa se pode afirmar convencida do que quer que
seja, já que não tem de submeter a sua crença a qualquer outra prova.
Obviamente, isto insere-se no projecto de Peirce de tornar a filosofia uma
ciência em que haja confronto de ideias
e discussão científica em comunidade.
Ainda nesta linha, Murphy conclui que «No
que respeita à metodologia, a filosofia devia imitar mais do que criticar as
ciências de sucesso.»[3]
.
Refere-se à experiência, que deveria fundamentar, na perspectiva de Peirce, as
teorias filosóficas, mais do que apenas uma cadeia única de inferências lógicas
não ancorada solidamente na realidade. Podemos remeter esta concepção à ideia
de um conjunto de crenças (segundo Bain, «aquilo segundo o qual um homem está
preparado para agir»[4]
)
estabelecidas, que fazem parte do Homem histórico,q um ser que age a partir de
motivações mais ou menos conscientes. A teoria do conhecimento de Peirce
centra-se nesta definição de crença. O inquérito peirceano, que já foi
referido, serviria para o indivíduo ou comunidade se libertar da dúvida, de
modo a fixar de novo uma crença e poder agir a partir dela. Aliás, concebendo o
pensamento como uma série de actos mentais encadeados com o objectivo de
adquirir a possibilidade de agir eficazmente (passando da «irritação da dúvida»
à crença), Peirce defende que o pensamento em acção tem sempre como objectivo o
pensamento em repouso, isto é, a dúvida seria o início de qualquer questão,
activando o pensamento, que só cessaria quando a tensão criada fosse eliminada
através de uma nova crença.
Notam-se nesta teoria alguns dos pontos
básicos do behaviorismo, nomeadamente na ideia de um estímulo que incentiva um
determinado comportamento e actividade. Peirce não termina, contudo, por aqui.
Prossegue afirmando que, uma vez acalmada a dúvida, as crenças podem dar lugar
ao que ele designa por «hábitos de acção», produzindo determinadas regras de
acção; o que significa que, de facto, o sentido de um pensamento pode ser
verificado pelo hábito de acção que produz. Isto é decisivo, tanto no contexto
do behaviorismo americano, como nas teorias pedagógicas levadas à prática nas
universidades americanas (em que é privilegiado o ensino do modo de aplicação
de uma dada teoria, e não apenas a compreensão da teoria an sich), como ainda numa nova teoria do conhecimento, segundo a
qual a experiência humana e o pensamento ético- moral e científico estão
relacionados numa evolução falibilista contínua. Prosseguindo, Peirce afirma
que as implicações práticas e experimentais dos efeitos das nossas ideias de
qualquer coisa nos fornecem o conteúdo geral do nosso conceito desse objecto.
Ora, ao verificarmos os efeitos dessa nossa concepção, estamos a submetê-la a
um teste, a verificá-la, confrontando as nossas concepções e expectativas com
toda e qualquer situação – inclusivamente linguística – em que elas possam
“entrar em cena”. É a partir dos efeitos sensíveis que dessa confrontação
possam vir a resultar – e da comparação desses efeitos com aqueles que
eventualmente esperássemos – que (re) elaboramos essa nossa concepção.
Esta ideia exprime claramente o
experimentalismo de Peirce. O que Murphy tenta explicar com clareza, nem sempre
o conseguindo, é que o filósofo pensava principalmente no conhecimento
científico e em propriedades abstractas, quando referia termos como
«experiência» ou «concepção». No fundo, o pragmatista procura explicar como as
nossas concepções e crenças nos fornecem ideias mais ou menos vagas para o modo
de experimentação necessário ou previsível para estabelecer a validade dessa
crença. No caso do conhecimento e experimentação propriamente científicos, em
que é necessário estabelecer comunitariamente a crença, é absolutamente
essencial apoiar e confirmar para além de qualquer dúvida – independentemente
da esfera humana e individual – essa crença defendida. Para além disso, «o
método deve ser tal que a conclusão última de qualquer homem venha a ser a
mesma»[5]
.
Poder-se-ia perguntar se este não é um
aprofundamento do método cartesiano de investigação, devido à emergência de
novas condições de fazer ciência. Na realidade, não custa verificar que Peirce
procura um método que permita alcançar qualquer coisa como a verdade, não na
acepção histórica do termo, no seio de uma comunidade de cientistas: «Uma
crença verdadeira é aquela que está destinada a merecer o acordo final de todos
os que investigam cientificamente.»[6]
.
Só que tal implica, de facto, o abandono do cartesianismo, pelas razões que já
vimos acima, mas também porque a ciência já reunira, ao tempo de Peirce, um corpus de conhecimento suficiente para
procurar novas e mais eficazes concepções para prosseguir a busca de um
conhecimento mais aprofundado. Para Charles S. Peirce, não devemos esquecê-lo,
a experimentação era algo que possuía objectivos muito bem definidos e que
contemplava expectativas marcadas, o que implicaria uma intervenção, e não mera
observação, nos fenómenos – como meio de estabelecer a eficácia de novos
princípios.
William James (1862- 1910) escreve, acerca do pragmatismo: «Um
pragmatista volta decididamente as costas a uma série de hábitos inveterados
que são caros aos filósofos profissionais. Renuncia à abstracção e à insuficiência,
às soluções verbais; às más razões apriorísticas, aos princípios rígidos, aos
sistemas fechados e aos pretensos absolutos e origens. Volta-se para o concreto
e o adequado, para os factos, para a acção e para o poder.»[7]
.
Murphy parece defender aliás, que não é claro quem primeiro terá usado o título
“Pragmatismo” – James ou Peirce. Em todo o caso, ele já seria usado, antes de
publicitado e popularizado, no Clube Metafísico, frequentado por ambos
Conhecido como um dos pais da psicologia,
James parte da noção de livre arbítrio de Renouvier («Sustentação de um
pensamento porque eu assim escolhi, quando poderia ter outros pensamentos»[8]
)
para elaborar a sua teoria reflexa da mente, segundo a qual percepção,
pensamento e vontade (a corrente de consciência) se conjugam para, a partir dos
dados recebidos pela primeira, agir no mundo, em actos dominados pelo lado
volitivo – o que significa que percepção e pensamento são apenas etapas para a
acção. A referida definição de livre arbítrio faz James não descurar, como
afirma que Spencer faz na sua teoria evolucionista, os interesses subjectivos
na condução do Homem na sua acção no mundo, uma vez que defende que são
interesses, preferências e expectativas aquilo que dirige a mente para essa
acção. Na verdade, verificamos que James transforma esta ideia na de uma
filosofia que provoca ao Homem o agradável “sentimento” de racionalidade,
aquando da resolução de conflitos essenciais e presentes, i.e., que responde às
necessidades práticas e teóricas do ser humano.
É fácil perceber a influência de Peirce.
Não obstante, seria preferível não falar, como faz Murphy, em «sentimento de
racionalidade», quando nos referimos a algo que poderíamos definir como a
correspondência entre as nossas expectativas de obtenção de bons resultados
práticos a partir de uma filosofia e os resultados efectivamente obtidos.
Trata-se, sem dúvida, do fim daquilo que Peirce designa como «a irritação da
dúvida». O princípio é claramente expresso por John Murphy: «A questão em James
é que a crença existe com vista à acção.»[9]
.
James, no fundo, vem dizer, um pouco para
além de Peirce, que a crença estabelecida (e não necessariamente apenas a
crença em processo de “instalação”) existe e é posta à prova com vista a uma
acção que acrescente eficácia à previamente estabelecida, ou seja, ao princípio
anteriormente aplicado para a obtenção do mesmo fim. Para esta aplicação, quer
dizer, para a produção do sentido a expor, James pensava necessário apenas
encontrar a regra que o permite exprimir ao e no mundo – isto é, encontrar o
princípio pragmático (no sentido kantiano do termo) que relacione a cognição,
ou crença, com o propósito a atingir. Para Murphy, estas regras pragmáticas
jamesianas estabelecem, com a clareza das ideias e o conhecimento dos seus
propósitos práticos, o carácter racional e - poder-se-ia dizer - dirigido das
cognições, num processo mais “intelectualista” do que o do experimentalismo
peirceano.
Esquematicamente, a concepção teleológica
de James diverge da teoria de Peirce. Se, de facto, concordam que, onde a
dúvida ocorre, começa o inquérito (pensamento em movimento) com o objectivo de
alcançar o pensamento em repouso (crença), James considera este último pautado
pela clareza e pelo estabelecimento de regras pragmáticas, conducentes a uma
acção segura e eficaz. Peirce diria que é a partir da experiência prática que
sabemos se a crença é ou não eficaz, o que releva da distinção entre propósitos
práticos e propósitos racionais. Os primeiros referem-se ao resultado
expectável da prossecução de um pensamento – o que está mais próximo da teoria
de James; os segundo relacionam-se com os efeitos concebíveis, previsíveis, da
execução de uma acção.
Trata-se daquilo que Murphy designa como o
Princípio de Sentido de Peirce: «Se alguém puder definir com exactidão todos os
critérios que governam os usos de um predicado, teremos, aí, uma definição
completa do sentido daquilo que ele predica.»[10]
.
Pode considerar-se tal princípio uma indicação metodológica para a definição de
um termo inicialmente abstracto, como um modo de esclarecer o sentido de uma
proposição. O mesmo já não acontece com o Princípio de Credibilidade de James,
que está orientado para procurar as consequências práticas que uma formulação
metafísica pode vir a obter: «Se alguém puder definir com precisão todos os
mundos possíveis e todas as vidas possíveis nos quais uma frase é verdadeira,
teremos, aí, um cômputo completo da credibilidade do que a frase diz.»[11]
.
Obviamente, tal princípio de credibilidade é habitualmente truncado, de modo a
obter um princípio de credibilidade discursiva suficiente, num processo
argumentativo. Como se vê, a grande diferença entre os sistemas filosóficos de
Peirce e James, entre o experimentalismo do primeiro e o Pragmatismo do segundo
reside na já referida proximidade de C. S. Peirce com as ciências naturais,
nomeadamente quando fala de «resultado experimental» da experiência levada a
cabo. James designa esta posição como Teoria da Verdade de Peirce, que já foi
referida[12]
, que tende
para uma declaração da possibilidade de alcançar a verdade absoluta, a que
James contrapõe a pragmaticidade ou falibilismo da verdade: «Temos de viver,
hoje, com a verdade que podemos obter, hoje, e estar prontos para, amanhã, lhe
chamarmos falsidade.»[13]
A posição falibilista de William James põe
em relevo o caracter histórico, evolutivo, da verdade. Esta deixa de ser
considerada algo inerente a uma ideia, passando a ser vista como algo que
depende grandemente da sua utilidade prática, o que Murphy sintetiza naquilo
que designa por Definição de Verdade Instrumental: «Uma ideia é
instrumentalmente verdadeira na medida em que nos ajuda a entrar em relações
satisfatórias com outras partes da nossa experiência.»[14]
.
Logo, qualquer ideia pode encontrar-se em processo de se tornar verdadeira, e
uma ideia pode ser mais verdadeira do que outra; o facto da verdade ser, de
acordo com esta definição, algo de gradual tem a ver com o seu carácter
instrumental. Uma ideia, assim, poderia ser mais verdadeira que outra se de sua
aplicação se retirasse maior satisfação; depois, esta “ideia mais verdadeira”
passa a substituir a primeira no sistema de crenças, tendendo o Homem a
acomodar com a menor perturbação possível esta “nova verdade” no seu velho
sistema – que, aliás, fez brotar esta
nova concepção, através de um processo de inquérito e verificação (que permite
perceber até que ponto é a nova concepção capaz de acrescentar novas
experiências ao anterior sistema de crenças). Em resumo, James afirma que a
verdade é uma “propriedade evolutiva” (logo, em devir) das crenças global e
comprovadamente boas (por verificação), que são aquelas que se provaram a si
próprias como expedientes ou “eficazes” (globalmente e a longo prazo).
Murphy designa esta teoria como «Teoria da
Verdade de James: O que é verdadeiro no nosso modo de pensar é a produção de
crenças que se provam a si próprias serem boas, e boas por razões definidas,
determináveis.»[15]
. Como é
óbvio, o que se perde com esta concepção falibilista de verdade é a esperança
de alguma vez ser possível alcançar a verdade última, absoluta, tendo a
consciência de tal. Em todo o caso, os pragmatistas não negam essa
possibilidade (preferem cair em erro do que descurar uma possibilidade de
encontrar a verdade), apenas a pensam de modo diferente, comunitário e
utilitarista. Que é, de facto, o modo habitual da ciência e do indivíduo
lidarem com as respectivas crenças – não podemos conceber alguém que esteja
globalmente errado acerca de tudo, embora possamos decerto pensar que alguém
assuma posições menos eficazes para determinados fins do que outras já
conhecidas.
3.
As perspectivas pragmáticas de Dewey,
Quine, Davidson e Rorty
Dewey é conhecido por ser um dos mentores
do behaviorismo. Tomou contacto com o evolucionismo ainda na universidade,
compreendendo então a importância da «inter- dependência e unidade de inter-
relação de todas as coisas»[16]
,
ao mesmo tempo que estudava a noção jamesiana de corrente de consciência. Dá
origem a uma época mais activa do Pragmatismo, aberta em reflexões que, embora
derivadas de conceitos já pensados por James e Peirce, são reflexões mais
próximas de nós, mais de acordo com o espírito do século XX – nomeadamente no
que diz respeito à linguagem e à crítica ao positivismo lógico. Murphy estuda
com especial ênfase, nesta obra, a filosofia de Dewey, particularmente sob o
prisma do seu aluno Quine.
Ainda que, para Dewey, o conceito de acção
tenha sido depreciado, é papel do Pragmatismo pôr em causa esta depreciação.
Afirma que Charles Darwin realizara já uma viragem nesse sentido, que
consistira em aplicar à biologia o princípio prático da evolução, da mudança.
Dewey formula uma teoria da concepção, de acordo com a qual a mente usa os
conceitos como resposta indirecta – mas efectiva e eficaz – aos desafios do
meio envolvente. Este é, percebemos, uma das pedras angulares do bahaviorismo,
a partir da qual Dewey reformula o conceito de “experiência”, fazendo-o
regressar à definição original, de acordo com a qual a experiência consiste na
capacidade de realizar uma determinada tarefa ou conjunto de tarefas, com base em
conhecimentos adquiridos por experiências presenciais e de acção. Combina,
assim, o método experimental com a teoria o que, como não podemos deixar de
reconhecer, só traz vantagens para a ciência e filosofia (não é, em todo o
caso, totalmente original, uma vez que já vimos, com Peirce, a vantagem
científica de apoiar a teorização filosófica na experiência).
Dewey acrescenta algo, obviamente. A
experiência consiste em transacções e interacções, mas apenas um bem
determinado tipo de transacção pode dar origem a experiência humana válida. O
pragmatista distingue, nas transacções naturais («que ocorrem naturalmente [e],
nas quais os componentes e elementos envolvidos são simultaneamente condição e
são condicionados pela coordenação global»[17]
),
as transacções físio- químicas, transacções psico- físicas e transacções
experienciais (caso das transacções de comunicação linguística e do modo de
vida em sociedade em geral). São estas últimas (linguísticas e sociais) que dão
origem à experiência humana (as transacções experienciais são exclusivamente
humanas) que, claro, exige que as diversas experiências sejam incluídas no
nosso acervo de conhecimento, integrando-se no seu curso. Murphy não torna isto
muito claro, deixando entrever uma possível ligação ao conceito de corrente de
consciência de James. Uma das questões a levantar prende-se com o modo de
integração: (1) sob a forma de leis gerais a aplicar no quotidiano?; (2) sob a
forma de experiência individuais e extraordinárias recordadas?; (3) parte de
uma “biblioteca” de experiências, em permanente actualização? Aparentemente,
quando Dewey se refere ao carácter estético e emocional da experiência, está a
confirmar a segunda hipótese: cada experiência individual inclui-se como uma
singularidade no corpus experiencial
da pessoa. O que pressupõe que, aquando da aplicação deste princípio, o
inquérito teria de ser efectuado como se o resultado fosse previamente
conhecido – o que vem em oposição ao intelectualismo (segundo o qual o “uso
correcto” só seria possível depois do verdadeiro conhecimento).
Dewey distingue a experiência directa ou
primária da experiência reflexiva ou secundária. Esta última permitir-nos-ia
definir um caminho, a partir da “matéria bruta” da experiência, para regressar
a esta, embora com capacidade interventiva acrescentada: é dado um significado
ao vivido. O conhecimento é adquirido a partir de um contacto prévio com a
“realidade”. O que Dewey critica no método não empírico de filosofar é o facto
de tentar ignorar a experiência reflexiva, a tentativa de conferir um sentido
às experiências. Assim, qualquer filosofia cujas conclusões conduzam à negação
do campo da experiência humana é digna de desconfiança por parte do senso
comum. Sendo que, como Dewey afirma, a filosofia é uma crítica dos
preconceitos, não deveria ela começar por não negar a validade da experiência,
antes “filtrando” o que nela há de verdadeiro ou válido? Afirma o pragmatista
que «o conhecimento é o fruto de empreendimentos que transformam uma situação
problemática numa situação resolvida.»[18]
.
A distinção entre teoria e prática faz,
para Dewey, mais sentido como distinção entre acção inteligente, teleológica
(acção dirigida para a consecução, não espontânea) e acontecimentos e
interacções sem intencionalidade (no fundo, a distinção é equivalente à que é
estabelecida entre as diversas interacções naturais e a interacção sócio-
linguística). A intenção é, claro está, marcadamente humana. Para John Dewey é
inegável a continuidade da psicobiologia humana em relação à Natureza. A
liberdade humana exerce-se, contudo, na acção; «Somos livres no grau em que
agimos, sabendo o que somos»[19]
,
i.e., na medida em que combinamos a certeza das relações que reconhecemos com a
incerteza das nossas previsões orientadoras da acção. Na senda de James, Dewey
sublinha claramente o carácter historicamente situado de toda a reflexão
filosófica, inseparável da existência dos filósofos num mundo e cultura
próprios. A experiência é incorporada na existência, e os “sistemas de crenças”
são acrescentados, embora minimamente abalados, pela experiência nova, formando
cada pessoa um património novo e inacabado.
Dewey prossegue para uma abordagem dos
conceitos de liberdade, gosto, prazer e valor (que Murphy, aliás, segue e
apresenta com atenção e cuidado no livro). O que ele pretende é atribuir à
experiência a propriedade de permitir a actualização permanente dos valores
morais, tal como do resto dos campos do saber humano. Não distingue, como os
deterministas, entre o saber sobre aquilo que “é” e o que “deve ser”, porque
ambos se baseiam nas experiências passadas para reflectir e compreender os
desejos e o modo de obter o prazer e a satisfação desejados. O sentido não
reside na linguagem, mas no comportamento, na experiência.
O Pragmatismo é claramente adversário da
teoria da linguagem como cópia, segundo a qual, ao mudar de linguagem (numa
tradução, por exemplo) estaríamos apenas a alterar as designações atribuídas às coisas.
Quine, discípulo de Dewey, procede, nas
décadas de 50 e 60, àquilo que poderíamos designar por purificação final e
completa do empirismo moderno, o que pode ser visto como uma redefinição e
síntese refinada do que foi exposto anteriormente. Começa, como Murphy explica,
por identificar dois dogmas do empirismo: a dicotomia entre verdade analítica
(abstracta) e verdade sintética (fundada em factos); e o reducionismo, segundo
o qual uma afirmação, para ser considerada verdadeira, com sentido, deve poder
ser reduzida a uma construção lógica. Dewey, no entanto, concebe o sentido como
(1) propriedade do comportamento linguístico e/ou de suas expressões ou (2)
propriedade dos objectos designados por esse comportamento. Segundo a
interpretação dada por Quine a esta teoria, Dewey falha a distinção entre
sentido e essência – o sentido é aquilo que as essências se tornam quando são
referidas pela linguagem: «As coisas têm essências, para Aristóteles, ao passo
que apenas as formas linguísticas têm sentidos. Os sentidos são aquilo em que
as essências se tornam quando se divorciam do objecto de referência e se casam
com a palavra» [20]
. Nesta
concepção está já implícita a distinção entre sentido ou intensão (conjunto de
traços que todos os membros da extensão partilham) e referência ou extensão
(totalidade de objectos a que o termo se refere. Numa situação de tradução em
que a língua de origem é totalmente desconhecida (situação de tradução
radical), nenhum deles é passível de descoberta – não é possível a tradução por
mera referência.
De qualquer modo, a tradução só poderia
ocorrer mediante a compreensão de todas as situações discursivas em que os
termos podem ocorrer, em cada uma das línguas envolvidas. Trata-se,
simplesmente, de compreender que só a partir da consideração das próprias
situações discursivas e das regras e crenças passíveis de ser retiradas delas é
possível formar uma base de interpretação da língua de cada um dos falantes.
Esta é uma expansão linguística das teorias naturalistas dos pragmatistas, que
Quine inclui nos cinco pontos de viragem do empirismo pós- Hume, da
responsabilidade dos pragmatistas: (1) substituição e expansão do conceito de
ideia pelo e para o de expressão linguística (nominalismo metodológico); (2)
confiança na definição contextual como modo de definir um termo e/ou situação
(contextualismo ontológico); (3) substituição das expressões lógicas pelos
grandes corpos de teoria científica como modo de captar os sentidos (holismo
epistemológico); (4) abandono definitivo da dicotomia analítico/sintético
(monismo metodológico); e (5) abandono do objectivo de encontrar uma verdade
última e absoluta (naturalismo epistemológico). Estes são, como parece claro,
os pontos que foram desenvolvidos durante este curto trabalho como “nós” de
reflexão dos pragmatistas, e que se constituíram como a reacção do Pragmatismo
ao cartesianismo determinista e dogmático e, como Rorty refere, à filosofia
analítica de início do século, que mais não seria, na sua opinião, do que um
movimento reaccionário que procura demonstrar a existência de elementos
invariáveis na experiência histórica.
Quine, como os pragmatistas clássicos,
considera antes que a verdade não é algo que esteja “aí” para ema conceptual e no conteúdo dos conceitos – para o
Pragmatismo, crença e sentido são interdependentes. Substitui também o conceito
de tradução radical pelo de interpretação radical: «Toda a compreensão do
discurso do outro envolve uma interpretação radical.»[21]
.
Esta teoria da interpretação pressupõe a necessidade de um acordo geral entre
interlocutores, quanto às crenças e condições de verdade mútuas. Isto,
normalmente, significa aplicar o interessante Princípio de Caridade de Quine,
segundo o qual se parte do princípio que, antes de considerar falsa uma
afirmação de um interlocutor, se parte do princípio que esse “ruído” se deve a
uma diferença ideolectal de linguagem.
Rorty, por seu lado, concebe o pragmatismo
como centrado em três caracterizações, que vêm confirmar a tese de Quine acerca
das diferenças entre o empirismo clássico e o experimentalismo pragmatista: o
anti- essencialismo, a negação da diferença metafísica entre moralidade e
ciência, entre “dever ser” e “ser”, e a ausência de limites ao inquérito que
não sejam aqueles de ordem conversacional, natural ou mental. O Pragmatismo
deixa de confundir solidariedade com objectividade, no seguimento do Princípio
de Caridade, tão marcadamente pragmatista. Davidson, aliás, chama à sua teoria
da verdade e conhecimento «teoria da coerência», opondo-a à sempre atacada
teoria da correspondência; trata-se de uma concepção holística, segundo a qual
é a coerência interna de um sistema que gera a possibilidade de correspondência
(apenas crenças justificam outras crenças, e as transacções entre crenças
constituem tudo o que pode vir a ser conhecido).
O que todas estas teorias e reflexões têm
em comum é a ênfase no falibilismo e na impossibilidade e, mesmo, recusa de
abandono de preconceitos até surgir algo que os coloque em causa. O mecanismo
envolve sempre uma atenção extrema à experiência quotidiana e ao seu papel na
construção da identidade do sujeito.
4.
Conclusão
Esta é uma obra que, claramente, aborda de
um ponto de vista restrito – interior, diríamos – todo o movimento pragmatista.
Daí que, por exemplo, não haja mais do que simples referência à teoria do signo
de Peirce. A sua relevância para esta abordagem é muito reduzida. Como Rorty
explica na Introdução a este livro, O Pragmatismo dá-nos uma perspectiva
do Pragmatismo na sua afirmação anti- representacionista, o que se traduz, a
nível linguístico, pela recusa liminar do positivismo lógico. As teorias de
verdade e de linguagem, particularmente no que diz respeito às definições de
tradução e interpretação radical de Dewey e Davidson, apontam para uma
perspectiva bem mais aberta da linguagem.
A génese da Pragmática linguística veio
confirmar a abertura de um novo caminho para a análise das interacções
simbólicas humanas. Um caminho pautado por forte ancoragem exemplificativa, em
vez de conceitos abstractos e supostamente invariáveis. Em suma, uma análise
não dogmática nem totalmente abstracta, mas sobretudo aberta, declaradamente
falibilista e em elaboração contínua, como os pragmatistas defendiam que uma
filosofia deveria ser.
Como é natural, os consensos não surgem
com facilidade, o que é compreensível - num campo tão vasto e complexo como é o
da linguagem, tão pleno de questões fascinantes e profundas diferenças
subjectivas.
5.
Bibliografia
BOORSTIN, Daniel J.(2000) – Os
Pensadores (Or. The Seekers, 1995), Rio de Mouro, Círculo de
Leitores, pgs.334-338.
DUCHESNEAU, François, (1983) - «A
Filosofia Anglo- Saxónica», in A Filosofia do Mundo Científico e
Industrial, direcção de Châtelet, François (Or. Philosophie du Monde
Scientifique et Industriel, 1972), Lisboa, Publicações Dom Quixote,
pgs.103-124.
MURPHY, John P. (1992) – O Pragmatismo:
de Peirce a Davidson (Or. Pragmatism, 1990), Lisboa, Edições Asa,
191 pgs.
RODRIGUES, Adriano Duarte (1996) - Dimensões
Pragmáticas do Sentido, Lisboa, Edições Cosmos, pgs. 37- 51.
[1]
in Boorstin, 2000:334
[2]
cit. in Murphy 1992:20
[3]
in Murphy, 1992:22
[4]
in Murphy, 1992:34
[5]
cit. in Murphy, 1992:45
[6]
idem, 1992:46
[7]
cit. in Boorstin 2000:338
[8]
cit. in Murphy 1992:27
[9]
in Murphy 1992:61
[10]
in Murphy, 1992:67
[11]
idem
[12]
Vide página 6 deste
trabalho: «Uma crença verdadeira é aquela que está destinada a merecer o acordo
final de todos os que investigam cientificamente.»
[13]
cit. in Murphy, 1992:71
[14]
in Murphy, 1992:73
[15]
in Murphy 1992:81
[16]
cit. in Murphy 1992:86
[17]
cit. in Murphy 1992:91
[18]
cit. in Murphy, 1992:99
[19]
cit. in Murphy, 1992:101
[20]
cit. in Murphy, 1992:114
[21]
cit. in Murphy, 1992: 134
|
|