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Recensão por: João Carlos Correia Através do aprofundamento da problemática da experiência humana, a autora procura investigar a reabilitação do preconceito empreendidida por H.-G. Gadamer,enfatizando a novidade da concepção hermenêutica de experiência como fonte de toda a experiência e saber. Para a autora, só se consegue proceder à autonomização da filosofia quer da sua tradicional ligação à teologia, quer da sua moderna dependência da lógica da investigação científica, enfrentando o mistério, a insondabilidade da experiência.
As consequencias da consideração da historicidade do existir , objecto da reflexão gadameriana remetem para a problemática da autoridade, da tradição, e da legitimidade do preconceito. No fundo só a dimensão dialógica, préconceptual e intersubjectiva da experiência permite a abertura fundamental a novas experiências. Com Wahreit und method, recusa-se a dimensão puramente teórica e metódica da Hermenêutica, entendida, de modo reductor, por Dilthey e por alguma, não toda, reflexão epistemológica sobre as Ciências Sociais. Depois de Descartes e de Kant, e do empreendimento crítico do segundo no esforço de ultrapassagem da metafísica dogmática, impõe-se uma crítica da Crítica kantiana, que faça aparecer as condições históricas, sistematicamente obliteradas, do próprio transcendental kantiano. A hermenêutica filosófica, designadamente o empreendimento gadameriano, inscreve-se neste movimento, no qual se enfatiza a familiaridade ou a pertença do próprio sujeito aquilo mesmo que opõe a si como dado ou objecto. Com efeito, a aparição das «ciências do espírito» (Geistewissenchaften) tinha ressaltado de modo evidente que nesse âmbito, como sugere Gadamer, não era mais possível manter no conceito de dado a fixidez e a estranheza peculiar às imagens do mundo físico. O predomínio do pathos da ciência traduziu-se no predomínio original do monismo epistemológico que, com Comte e Durkheim, procurava ainda aplicar no capítulo das Ciências Humanas e Sociais o modelo de uma ciência newtoniana. Foram os trabalhos de Dilthey, o impacto dos dos últimos trabalhos de Husserl, as investigações epistemológicas de Max Weber e sua a exigência de atribuição de um significado à acção para que a mesma tivesse o estatuto de social, além das consequências da própria hermenêutica heideggeriana e post-heideggeriana bem como o trabalho discreto e insuficientemente comentado de Alfred Schutz ,que permitiu a ultrapassagem do modelo objectivista nas Ciências Sociais, tão argutamente mencionado por Merleau-Ponty em «A filosofia e o sociólogo». Porém, a fundamentação psicologista original da “compreensão” empreendida por Dylthey acabou por reduzir, de forma aporética, as possibilidades contidas na ideia hermenêutica de compreensão, ao pensar a investigação do passado histórico como um deciframento e não como uma experiência. A história surgia como um texto encerrado em si e não como “lugar de participação dialogal.” Será necessário aguardar por Heidegger e por Gadamer para poder pensar a historicidade como fundamento da comunicação. Isto implica que o ser seja “encontrado pela palavra da tradição.” Ou seja, “reflectir, depois de Kant, sobre a possibilidade da experiência ontológica implica segunda Gadamer, seguir na esteira de M. Heidegger, seu mestre, e reconhecer todo o pano de fundo heremenêutico e histórico pressuposto em cada experiência ôntica.” (Cfr. O Preconceito em Gadamer, p.29)
A introdução da historicidade implicará para Gadamer, o reconhecimento do carácter positivo e primacial do preconceito, desconhecido por Kant e pela filosofia reflexiva, agora reabilitado em nome da crítica à ingenuidade do conceito e do primado da consciência constituinte. Nesse sentido contra uma interpretação da experiência toda ela fectuada a partir da sua referência ao saber matemático, cumprindo a exigência de Roger Bacon no Novum Organun, de purificação da razão humana, sustenta-se que o reconhecimento do carácter linguístico-relacional e histórico-preconceitual do mundo contribui para uma consideração mutíssimimo mais enriquecedora e polifórmica da experiência humana. Nessa medida, esta consideração da experiência conduz a uma outra concepção de verdade e de conhecimento, na qual o objecto da da reflexão filosófica passa pelo tema do questionar dos limites da ciência no conjunto da vida humana. Deste modo, há uma remissão para um certo conceito de praxis e de teoria, no qual a experiência de ser ganha um papel fundamental: perdida a referência clássica à teoria como saber imanente e global sobre o homem e o mundo, a praxis cunhada pelo nascimento da ciência moderna esquece o núcleo ético-dialógico da solidariedade ou comunicação humana, implícito no próprio conceito grego de praxis para finalmente se reduzir a um esquema puramente pragmático de acção.” (Idem, p. 48).
Ora, a resposta a um concenso fundado apenas na eficácia e na racionalidade solitária e utilitarista - a racionalidade instrumental - merece um questionamento que passa pela razão prática: “Só um atenção à alteridade do concreto, do individual e do circunstancial humano permite repensar o que se tem retirado ao pensamento da experiência : o significado ético - irredutível e complementar - do outro ou da diferença nela doado. “(Idem, p. 51). Este percurso que vincula a experiência humana à própria vida, é, para a autora a retoma de uma preocupação que já assomava na fenomenologia, o que é uma clara alusão ao último Husserl e à introdução do Lebenswelt.
Nessa medida, toda a investigação gadameriana, e com ela, a da autora dirige-se à experiência predicativa do sujeito a experiência («mundo da vida») anterior a todo o juízo e que constitui desde Husserl , o solo que permite a formação do juízo e de todo o conceito. Com base nesta orientação, a autora desenvolve três partes ao longo da sua obra: a primeira parte desenvolve-se erm torno da hermenêutica como experiência e constitui um deselvolvimento de algumas das considerações aqui apresentadas. A segunda parte denomina-se “A Hermenèutica como verdade” e procura estabelecer a relação entre a experiência e a verdade: “é na pertença ou referência (não voluntarista nem objectiva) do espírito humano a algo essencial ao sentido do exisitir no mundo que deve procurar-se a dimensão originária e positiva da verdade.” (Ibid, p. 154). Nesta medida, “ a verdade é fundamentalmente, sentido/experiência/ «pathos» e naão apenas certeza. Tem uma dimensão retórica-hermenêutica essencial que deve ser esclarecida, pois é aquilo que lhe permite ser integração/explicação e não só reconstrução ou adequação.” (Idem, p. 157). Esta dimensão retórica-hermenêutica da verdade implica a análise do papel da linguagem como medium de toda a experiência ou compreensão. “Tal como suspende a substancialidade egóide do sujeito, também a linguagem eleva o sujeito acima da sua parcialidade. Logo só na linguagem e seus múltiplos jogos se realiza a compreensão.” O papel da linguagem na compreensão e na superação de um dimensão objectivista da ciência será deste modo esclarecido de modo luminoso por Gadamer: “falar não é apenas tornar disponível ou calculável: não apenas o enunciado e o julgamento são apenas formas particulares de entre a multiplicidade de comportamentos linguísticos como essa multiplicidade permanece intimamente ligada ao comportamento da vida. É por esse motivo que a concepção objectivante de ciência vê na configuração da experência natural do mundo pela linguagem uma fonte de preconceitos. ” (Gadamer, Vérité et Methode, Paris, Éditions du Seuil, 1976, p. 478). Logo, “na linguagem o mundo deixa de ser privado, um ambiente limitado para se a--presentar como um universo comunicativamente partilhado, um espaço de gravitação multiplamente habitado, por meio do qual , aliás, surge a realidade relacional da consciência.” ( O Preconceito em Gadamer, 189). Ou seja, “ só na linguagem (e seu poder dia-lógico) as coisas podem realmente alcançar a sua objectividade/subsistência/idealidade, pois só aqui deixam de coincidir com o meu ponto de vista ou com o do outro para se elevarem à dimensão (...) do universal e do comum.” (Idem, p. 191).
A terceira parte da obra consiste no esclarecimento mais implícito do conceito de “reabilitação do preconceito: a “a legitimação gadameriana dos pressupostos da compreensão humana prende-se com a sua reabilitação da autoridade da tradição, como momento essencial da experiência humana da finitude.” (Idem, p. 307). Recusando, mais uma vez uma mera interpretação epistemológica da comprensão e logicamente, da pertença e do pré-conceito, a autora segue de perto a relação que Gadamer estabelece com as Sagradas Escrituras, para analisar a sua reacção contra a depreciação iluminista dos preconceitos, e a implícita recusa de toda a autoridade. Nessa depreciação, “a razão nega a facticidade dos seus próprios limites, esquecendo os seus preconceitos e, com isso, a acidentalidade e motivação essencial de toda a interpretação.” ( Idem, p. 316). Nessa medida apesar de Gadamer aceitar a vinculação iluminista do preconceito às ideias de autoridade e tradição, simultaneamente rejeita a hipótese de que essa vinculação tenha um carácter perjorativo ou negativo: peo contrário, o preconceito é a traça de uma relação de alteridade fundamental. Nesta medida, é a percepção do preconceito, a escuta da tradição que permite, ao contrário do que pensa o dogmatismo iluminista, fugir à alienação e à menoridade.
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