A autora:
Anália Cardoso Torres é uma socióloga com especial interesse em analisar e investigar as vivências familiares, nomeadamente no que diz respeito à conjugalidade e às diferentes formas de a encarar e viver no quotidiano. Da sua extensa obra publicada salienta-se o livro em análise: “Divórcio em Portugal, ditos e interditos: uma análise sociológica”, mas também obras no âmbito da Sociologia do Casamento, Vida Conjugal e Trabalho, Homens e Mulheres entre Família e Trabalho, Drogas e Prisões em Portugal (em co-autoria) ou a Família e a Questão Feminina, só para citar alguns. A socióloga é também responsável pelo mestrado em Família e Sociedade do ISCTE.
A obra:
Na obra “Divórcio em Portugal, ditos e interditos: uma análise sociológica” a autora examina o aumento do divórcio em território nacional, procurando encontrar os sentidos atribuídos a este fenómeno que deixa marcas indeléveis na vida dos sujeitos. Em simultâneo, identifica os factores na sua origem, distingue as diferenças de género face ao processo de divórcio e as suas consequências.
Ao longo do presente trabalho são revelados dados estatísticos da realidade nacional, mas também se recorre ao cruzamento de dados da situação verificada em outros países e a estudos como os de Jean Kellerhals, Sussman, Martine Segalen, François de Singly, Irène Théry, L. Roussel, Alain Desrosières, Niklas Luhmann, Levinger ou Price e McKenry, bem como a integração de elementos conceptuais propostos por Pierre Bourdieu ou Anthony Giddens. No primeiro caso, à teoria bourdiana, Anália Torres, recorre aos conceitos de habitus e de trajectória social, nomeadamente para explicar determinados tipos de condicionamento que estruturam a vida familiar como o capital económico, - um dos mais referidos ao longo das entrevistas recolhidas pela autora -, o capital escolar e social. A Giddens, a autora, recorreu às noções de percepção, consciência prática e consciência discursiva, para enquadrar alguns dos testemunhos e as suas formas de expressar o que teria desencadeado o divórcio. Outro dos conceitos “explorados” é de auto-reflexividade ou de consciência reflexiva que os sujeitos apresentam no momento das entrevistas ao explicar, ou na tentativa de encontrar explicações para a ruptura.
Em termos metodológicos acrescente-se o recurso a entrevistas em profundidade para perceber melhor os significados que cada um atribui à ruptura e às suas causas.
O trabalho está edificado em teorias explicativas de relevo nesta matéria, todavia, a autora não se coibiu de apresentar algumas singularidades ao revelar as versões na primeira pessoa de três indivíduos que fizeram parte do estudo. Tal como a autora revela na introdução do livro: “O tema do divórcio é áspero, tem arestas. Sugere mal -estar, sofrimento. Representa o oposto da ideia positiva associada ao enamoramento e à paixão. Significa o fim de uma promessa, de um projecto, da partilha de um ciclo de vida”.
A obra em análise divide-se em cinco momentos. Numa primeira fase a autora procurou apresentar alguns esboços de resposta para o aumento do divórcio e transformações sociais, com especial destaque para o período 1974-1994.
Segue-se a apresentação de alguns modelos explicativos para o assunto em questão no segundo capítulo intitulado “O Divórcio à luz da sociologia da família”, no qual a investigadora sugere um modelo de análise em que se comparam três formas de conjugalidade com o mesmo número de tipos de divórcio. No primeiro caso, analisa-se o casamento encarado pela perspectiva institucional, a que corresponde um tipo de divórcio assente na fatalidade. No segundo, encara-se a união ao nível fusional a que corresponde um tipo de divórcio que a autora apelida de “culpa do outro” e, por último, refere-se a existência de uma forma de conjugalidade denominada associativa que corresponde ao tipo de divórcio desencontro, mais evidenciado em classes mais elevadas e em que os sujeitos possuem maior capital escolar.
No terceiro capítulo a autora explica cada um dos três tipos de divórcio anteriormente enunciados, exemplificando com a interpretação de alguns excertos de testemunhos destacando, já num quarto capítulo, as histórias singulares de três entrevistados: Susete, a mulher que assume o protagonismo do divórcio, após um ciclo de anos em que aceitou de livre e espontânea vontade o papel que lhe havia sido atribuído, o de Francisco que acabou por ser “traído” após ter correspondido ao papel que se lhe pedia: o de sustento da família e, por último, o de Manuel, que assumiu algumas das atitudes habitualmente femininas ao cuidar dos filhos enquanto a mulher estudava, sendo ele que possuía menos recursos económicos e que na altura da ruptura foi o que ficou sem casa e filhos.
Por último, a autora traça algumas pistas de reflexão para uma realidade que se divide entre ideias feitas sobre a normalidade do casamento e os respectivos deveres atribuídos a cada uma das partes.
Ao longo de toda a obra, a investigadora realça o papel dos silêncios, das partes que não se contam, apontando-os como elementos importantes para melhor compreender o social, mas que, por sua vez, raramente são revelados. São as chamadas zonas opacas em que cada um encerra os momentos que prefere não partilhar. Estes interditos, zonas cinzentas em que não existe o preto no branco, são as grutas onde se guardam os sentimentos e se escondem as angústias.
Cortar amarras. Uma tentativa de compreensão da realidade
Casamento. Compromisso. Acordo. União. Partilha. Aparentemente, e em todas as situações, casamento implica um destes conceitos. De livre e espontânea vontade, ou imposto pela família ou circunstâncias, o casamento é sempre compromisso e partilha, às vezes de momentos bons, outras, de momentos agonizantes. Fazendo uma viagem histórica denota-se a existência de uma série de valores que, no caso português se situam no período antes 25 de Abril de 1974, no qual o casamento era entendido como uma instituição que deveria ser preservada. Para as mulheres assentava no estatuto que esse momento lhe dava, no caso dos homens, significava a perda clara de liberdade. Com o passar dos tempos, com as mudanças, no caso nacional rápidas em alguns sectores, o que antes era adquirido como certo e perene começa a ser colocado em causa. O crescimento urbano também tem alguma influência em todo este processo. É mais fácil, principalmente para as mulheres, ser divorciada num centro urbano em que a influência e controlo social se dispersa do que num meio rural, onde os condicionalismos sociais e principalmente religiosos tê um papel fundamental na aceitação, ou não, das opções.
Divórcio. Ruptura. Irresponsabilidade. Falha. Desunião. O divórcio é, cada vez mais, uma das dimensões que sucede ao casamento e que deriva das diferenças, sejam elas de valores, de expectativas, de deveres e direitos ou de tempos. O divórcio é a consequência do que não resultou. Por culpa própria, do outro, da vida, do destino, do desencontro. O aumento exponencial das situações de divórcio em Portugal revelam mais do que uma crise de valores e da família, uma transformação profunda no modo como as vivências são encaradas. Partilhar uma vida é sempre significado de cedência, aceitação do outro, anulação de pequenas partes do eu. Mas é também, ou pelo menos deveria ser, respeito pelo outro, comunicação, capacidade de aceitar, tolerar, encontrar caminhos e pontes de intersecção. É comunidade, mas também permanência da individualidade. Na realidade, uma das situações com as quais Anália Torres se deparou no decurso do estudo que deu origem ao livro aqui em análise deriva do sistema de “incomunicação”, de uma leitura em dois andamentos da sua experiência e da incapacidade para se encontrarem zonas de intersecção. Em muitos dos testemunhos denota-se um período de tempo em que um dos cônjuges nota sinais de ruptura mas que pouco ou nada faz para os contornar.
De facto, no livro de Anália Cardoso Torres, “Divórcio em Portugal. Ditos e Interditos” é uma outra visão do casamento, a ruptura que está em análise. Como é o entendimento da vida conjugal quando a experiência mostra que a conjugalidade falhou? Esta é uma das questões em análise num livro que procura, pelo menos, traçar rumos a outras interpelações. Que sentido atribuir ao aumento significativo do divórcio? Que factores contribuem para ele? Homens e mulheres viverão de forma idêntica a ruptura conjugal? Terá o divórcio o mesmo peso e as mesmas consequências nos diferentes sectores sociais?
Estas foram algumas das questões às quais se procurou ir dando resposta, ou pelo menos, atribuindo pistas explicativas para o aumento do divórcio num país que ainda é de brandos costumes e onde a sociedade e a família impõe pressões face ao que é a normalidade, mesmo que este seja um conceito que nem todos consigam definir em concreto o que é.
- Tipos de divórcio/ Histórias Singulares. Dois capítulos em análise (pp.73-178)
- O Divórcio fatalidade
Caracteriza-se, nos seus traços essenciais, pela existência de escassos recursos de capital económico, escolar e social; pela dependência socioeconómica de mulher face ao marido e face à própria instituição; por um modelo normativo rígido no plano da divisão sexual dos papéis, que confere à mulher o lugar exclusivo de dona de casa e mãe e ao homem o do sustento do lar; por representações que no caso feminino atribuem ao casamento a fonte essencial da realização efectiva e pessoal e de produção do próprio sentido de existência”. (Torres, 1996: 79-80)
Divórcio-fatalidade. Hecatombe parece ser o termo que melhor explana o sentimento sentido pelos indivíduos quando tudo à sua volta se desmorona. As expectativas, o sonho de uma vida a dois para sempre, o ideal da relação perene que se estatela no chão são ideias contadas, no caso do presente livro, predominantemente no feminino. Anália Torres repara que: “As palavras mais frequentes nestas entrevistas são destino, fatalidade, amante; os sentimentos e as emoções mais referidas, o desespero, a tristeza, a solidão, a raiva e por vezes, até, o desejo de vingança” (Torres, 1996: 73). Este cenário verifica-se maioritariamente “nos grupos sociais femininos de fracos rendimentos, baixa escolaridade, nos grupos etários dos 45 aos 60 anos, e em que a actividade das mulheres se circunscreve à gestão doméstica e familiar” (Torres, 1996: 73). Dito de outro modo, é nos meios populares que a mulher tem menos peso reivindicativo, menor capacidade financeira e onde os seus modos de actuação são mais controlados socialmente.
Uma outra característica verificada pela investigadora no decorrer deste estudo é o facto de a separação ser “quase sempre associada à existência de terceiras pessoas – a amante ou as amantes – e como se fosse exterior à forma como decorria a vida conjugal” (Torres, 1996: 74). Regra geral, as entrevistadas “sofrem” a separação, preferem não pensar em repetir a experiência e encaram o destino infeliz como uma cruz que devem carregar. Para a autora este tipo de divórcio, associado ao triste fado,- o destino escrito que não devem contrariar -, corresponde à forma de casamento-instituição, isto é, o matrimónio enquanto estrutura inabalável assente na “ partilha de um mesmo código de referências quanto ao casamento” (Torres, 1996: 74). Estas referências assentam essencialmente num investimento no casamento – e correspondente face materna - como único modo de realização pessoal e de alcançar a felicidade. Dito de outro modo: as mulheres investiram em cumprir os papéis habitualmente desempenhados pelo lado feminino: fada do lar, mãe extremosa e respeitadora da hegemonia masculina enquanto chefe da família e sustento. Nesta forma de encarar o casamento, as mulheres apresentam-se como totalmente dependentes face ao casamento, em especial, à sua manutenção, talvez seja por isso que mesmo quando muitas detectam “anomalias” as vão desculpando.
Neste ponto considero importante frisar o testemunho de Celeste, uma doméstica, por representar a ideia incorporada no género feminino sobre qual o seu papel de esposa. “Eu era impecável em ter roupas a horas, comida e tudo, que não tinha nada a dizer (…) Evidentemente a pessoa quando não sai de casa, não evolui de maneira nenhuma, pelo contrário, embrutece (…)”(apud Torres, 1996: 75). Este excerto revela o auto-conhecimento proporcionado pelo divórcio: a constatação de que tanta dedicação à vida do lar – como lhe era pedido, era o papel que devia desempenhar - a limitou e “embruteceu”. Esta consciencialização funciona como um acordar para a realidade. Ou como refere Anália Torres na introdução “a ruptura conjugal pode também ser encarada como reveladora da caixa negra que é o casamento”.
Um outro aspecto apontado pela autora é o processo de trajectória social descendente que uma situação de divórcio acarreta para o lado feminino, mesmo nos casos em que a mulher também trabalhava. Esta situação está de facto na base de tantas resistências por parte das mulheres por partirem para a ruptura.
Anália Torres nota ainda que apesar da separação e da dor, a maioria das mulheres continua a afirmar o amor que sentem pelos maridos, para além da ausência da “culpabilização directa dos maridos” (Torres, 1996: 76). Em nenhum dos casos encaixados nesta categoria de casamento-instituição se fala na possibilidade de desgaste amoroso ou de incompatibilidade de feitios. Estas parecem noções inexistentes.
É também evidente na maioria dos testemunhos que o casamento encerra em si um papel preponderante na vida e identidade da maioria destas mulheres: foram talhadas para uma vida em comum. “No limite, não aqui «definição de si» fora do casamento. Casa-se porque se ama, ama-se também porque se está casada; finalmente, o sentimento pode até perdurar para além do casamento (…) uma instituição a preservar a todo o custo” (Torres, 1996: 77).
A autora aponta como possível explicação para este entendimento do divórcio, – algo que não estava nos planos -, o facto de os valores que vigoravam na época em que a maioria das entrevistadas casou ser encarado como algo excepcional, contra-natura até, uma vez que a maioria das mulheres dependia economicamente dos maridos, e não seria de todo plausível a aceitação por parte da família de um regresso a casa num estado non-grato: divorciada. A estigmatização, que ainda hoje se verifica, tem para algumas classes sociais um peso avassalador.
Anália Torres repara ainda que “a ruptura conjugal surgiu de forma inesperada, pondo em causa não só as dimensões afectivas e amorosas como a sua própria maneira de viver. E essa descoincidência na relação ao que era esperável traduziu-se me dificuldades de adequação aos novos contextos, em perda de referências” (1996: 79).
A autora nota ainda que, principalmente no caso de mulheres com fracas possibilidades económicas, “o modelo de casamento que associa o papel da mulher ao de mãe e de dona de casa constitui a normalidade, o ideal a que todos deviam aspirar” (1996:78), revelando que “o casamento-instituição parece ser assim a forma de conjugalidade que se associa ao divórcio-fatalidade” (1996:79).
- O Divórcio culpa-do-outro
“As características do modelo [fusional] têm a ver com o destaque dos valores que insistem na exclusividade e na perenidade do laço conjugal, com a escolha de modos de relação que privilegiam o «nós-casal» em detrimento do «eu», e, finalmente, com o recurso a símbolos sociais afirmando claramente a existência do grupo, como tal, face ao exterior” (Torres, 1996: 87).
Na forma de casamento fusional, também designado de aliança, fundamenta-se o matrimónio na instituição de um laço conjugal na qual assenta uma solidariedade afectiva. O vínculo normativo e institucional também está aqui presente; o divórcio passa a ser visto como uma sanção nos casos em que uma das partes não cumpre com o seu papel. Nesta forma de encarar o processo de separação o que importa é encontrar o elemento causador da ruptura. É a “necessidade de encontrar um culpado” explica a socióloga.
Anália Torres preferiu apelidar os casos que se enquadram neste tipo de divórcio com a designação de “culpa-do-outro”. Nesta forma de casamento deixa-se de atribuir a culpa ao destino ou à amante e começam-se a esgrimir argumentos onde proliferam os defeitos, a ausência de qualidades, de comunicação ou o ciúme doentio.
O modelo fusional aponta para a existência de pré-noções de como devem ser os comportamentos, nomeadamente, o papel masculino enquanto suporte económico da família ou no facto de o ideal de casamento para toda a vida se encontrar enraizado.
Uma das características apontadas por Torres, apoiada nos resultados de uma investigação realizada na Suíça, adverte para o facto de “os «capitais» femininos” são os “que mais pesam na distinção dos tipos ou modelos de casamento” (1996:90). Na realidade, “são as mulheres operárias, muito mais do que as profissões que implicam maior nível de instrução, que insistem na defesa da ideia de perenidade do casamento, na valorização do «nós-família» em detrimento do eu e nas qualidades instrumentais” (1996: 90).
- O Divórcio-desencontro
O divórcio-desencontro ocorre em formas de casamento associativo, mais habitual em classes mais altas ou em sectores em que predominam os quadros médios e profissão liberais. Os problemas, a conflitualidade entre o casal, ocorrem devido a incompatibilidades de personalidade, derivam da dificuldade em gerir o quotidiano conjugal. Verifica-se aqui uma outra forma de encarar a ruptura, não como uma fatalidade, não como algo que apenas possa ser atribuído ao outro, mas sim como uma situação derivada da degradação da relação. Os discursos investigados por Anália Torres revelam uma clara postura de “não acomodamento a uma situação considerada insatisfatória” (1996: 108). Aliás, os casais, ou pelo menos uma das partes, que se enquadram neste tipo de divórcio, recusam permanecer numa “vida conjugal que perdeu o encanto”. Em simultâneo, encaram o divórcio não como um destino atroz que os limita a uma existência solitária, surge antes como uma possibilidade de reencontrar um caminho, o da felicidade, ao lado de outro indivíduo. A esperança é, nestes casos, mesmo a última a morrer. Se nos dois tipos de divórcio anteriores o motor que desencadeava o divórcio era o masculino; ou porque saia de casa ou porque era o culpado de uma, ou mais situações; no divórcio-desencontro tanto homens como mulheres dão o primeiro passo. Nestes casos o divórcio é encarado como um processo, uma experiência que viveram mas que não lhes limita de todo a existência. Por outro lado, em contraponto com as duas situações enunciadas anteriormente “o bem-estar, a harmonia da relação prevalecem sobre o valor «perenidade»” (1996:111).
O casamento associativo encara a união enquanto algo que deve ser compensatório. O facto de também ser uma forma de matrimónio onde predominam casais com formação universitária revelam que o valor igualdade na relação, seja nos direitos como nos deveres, é algo comummente aceite.
Umas das características comuns em todos os entrevistados, no que se refere ao período pós-divórcio e à possibilidade de novas relações, é que se tornam mais exigentes e cautelosos. Apesar de alguns aceitarem a perspectiva de novas uniões exigem do outro mais informação, mais observação antes de se entregarem por completo. Por outro lado, verifica-se também aqui a diferença de género, pressionada pelas contingências sociais. Os homens admitem novas relações com mais frequência, as mulheres optam por se proteger de novas investidas. Por receio interno e afectivo, mas também por aquilo que se pode dizer delas. Dito de outro modo, ao homem é-lhe pedido que reaja de acordo com a sua masculinidade e sexualidade, é um direito refazer a sua vida, às mulheres, principalmente às que têm filhos, pede-se recato e uma postura mais de encontro àquilo que deve ser o comportamento feminino.
Abordagem crítica
“As mulheres eram «escravas» da procriação,
agora emanciparam-se desta servidão imemorial.
Elas, que sonhavam ser fadas do lar,
querem agora exercer uma actividade profissional.
Elas, que estavam submetidas a uma moral severa,
obtiveram o direito o direito à liberdade sexual.
Acantonadas que estavam nos sectores,
ei-las que abrem brechas nas cidadelas masculinas,
obtêm os mesmos diplomas que os homens e
reivindicam a paridade política.”
(Gilles Lipovestky)
Tendo em conta a leitura de partes do presente livro, - aliando-se a outras leituras – denota-se que no decurso da história muitas das alterações verificadas ao nível dos valores derivam dos diferentes papéis que se atribuem aos diferentes géneros. No caso português, algo comprovado pela leitura do livro de Anália Torres, verifica-se que a revolução de Abril, a entrada das mulheres no mundo do trabalho, o aumento da escolaridade e, em paralelo uma perda do poder da religião, traduziram-se numa mudança nos modos como o casamento, a afectividade, a conjugalidade e o divórcio são entendidos pela sociedade. Indo de encontro a algumas ideias do senso comum, constata-se que é nas famílias de menores recursos que as mulheres mais se sentem tentadas a aceitar um matrimónio menos feliz, para o bem da normalidade familiar e comunitária. Pelo contrário, nos casos em que as mulheres se encontram em estados de realização profissional mais consistentes, em que o nível de escolaridade é mais elevado, se verifica uma tendência para não recear a ruptura nos casos em que sentem que a união não é compensatória. Apesar, de no livro “Divórcio em Portugal” Anália Torres “falar” em nome delas e deles, eu considero que na base da mudança de valores está de facto um conceito no feminino: a emancipação. De facto, uma maior reivindicação de igualdade derivou precisamente das mudanças que se foram verificando na sociedade em relação ao lugar ocupado pela mulher. Se durante anos, a população feminina não era tida nem achada na hora de escolher o companheiro foi, com o aumento da sua autonomia, primeiro económica, posteriormente ao nível da realização pessoal e de auto-estima, que vieram ditar um novo modo de entender os papéis sociais no casamento. A evolução operada desencadeou, principalmente nos homens com maiores habilitações literárias, a capacidade para melhor aceitar a igualdade de direitos e deveres na relação. Embora como em tudo na vida esta conclusão não encerre em si verdades homogéneas. A diversidade de comportamentos, valores e opções continua a apresentar diferentes modos de encarar as experiências.
Na verdade, da observação que cada um de nós pode fazer da sociedade, verifica-se que, na maioria das vezes, a culpa para os estados de infelicidade feminina deriva da sua própria postura. Elas sujeitam-se a serem elementos passivos, consideram que há tarefas que têm de ser obrigatoriamente desempenhadas por elas “porque eles não sabem”. Nos testemunhos presentes no livro de Anália Torres são diversas as atitudes de cedência por parte das mulheres em desempenhar os papéis que lhes eram solicitados, mesmo quando estas se sentiam “atingidas”, “vítimas”, “prisioneiras”, “humilhadas” ou incapazes de fazer valer a sua vontade. Por outro lado, é de notar que as próprias mães, mulheres muitas vezes insatisfeitas com o casamento, educam os filhos de um modo em que estes inculcam a ideia de que à mulher competem as tarefas domésticas, «tal como a mãe deles fazia», uma expressão que em outros contextos ou estudos também surge.
No cerne de toda a mudança, - de uma ideia de casamento tradicional, onde o afecto era o que menos contava -, está a crescente valorização do bem-estar individual, com a transferência para a vida privada e familiar dos ideais de democracia e a consciência de que no casamento a felicidade e a compensação afectiva têm um importante papel. Com efeito, a igualdade de oportunidades, de direitos e deveres, passou a estar presente nas práticas e concepções da vida familiar. O conceito de liberdade individual, a hegemonia da sexualidade sobre a procriação, a forma como a relação com o outro passou a ser encarada, bem como a mudança do estatuto social traduzem-se em protagonismos femininos potenciados também por um outro elemento a não descurar em todo este processo: a contracepção e a possibilidade de novas estratégias de fecundidade.
“Com a conjugalidade partilhamos o corpo, a casa, a família, os filhos, o dinheiro, começamos a construir, quase sem dar por isso, um empreendimento”, diz a autora de novo na Introdução do livro aqui em exame. Na realidade, quando se dá a ruptura é de facto um empreendimento que se desmorona. Neste momento, da caixa negra que é o casamento “saem monstros e demónios” e urge a separação não só física e emocional, mas também material. Nuns casos instaura-se o vazio. Noutros assiste-se à libertação de um pesado fardo. Num e noutro momento diferenciação os momentos da cicatrização, sempre dependentes do modo de vida que se leva e dos recursos que se dispõe.
Tal como aponta Torres nas Notas Conclusivas: “Produto da transformação dos valores, do protagonismo de novos sectores sociais, numa palavra da maior assunção da liberdade individual na esfera privada, as transformações no plano das relações familiares vieram para ficar. Trouxeram com elas novas questões e a reformulação de velhos problemas”. Primeiro com a laicização, com a separação das crenças religiosas da orientação das práticas quotidianas, com a democratização das relações entre os géneros, a actividade feminina, ou através do novo enquadramento jurídico em relação ao divórcio (Torres, 1996: 179-180). No entanto, apesar da maior abertura e aceitação do divórcio, enquanto elemento presente na vida das sociedades, não atenuam o facto de que “ser mulher, mas também ser homem, em certos contextos implica prestar contas ao seu grupo de pertença, aos colegas de trabalho, aos familiares e amigos”, alerta Torres (1996:181).
No livro em observação constata-se também que as diferenças são maiores quanto menores forem os recursos materiais e simbólicos. Homens estão mais em vantagem na pós-ruptura do que as mulheres.