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Recensão por: João Carlos Correia
UMA EXISTÊNCIA INAUTÊNTICA
François Fédier, Heidegger: anatomia de um escandâlo, Petróplolis, Vozes, 1989, 167 páginas.
Hugo Ott, Martin Heidegger: a caminho de uma biografia, Lisboa, Piaget, 1999
Richard Wolin, A política do Ser, Lisboa, Piaget, 1998
Jean-François Lyotard, Heidegger e os Judeus, Lisboa, Piaget, 1999
Não existe nenhuma razão política para banir Heidegger da história da filosofia. Semelhante ideia seria monstruosa e seria o equivalente simétrico dos que baniram filósofos e cientistas das Universidades por razões raciais ideológicas com a complacência, o silêncio ou a concordância de reitores como o próprio Martin Heidegger. Porém, apesar do carácter monstruoso e bizarro da ideia, continua ser necessário afirmá-lo. Com efeito, para muitos tocar neste tema é apenas uma forma de cair na táctica denunciada pelo próprio Heidegger: “Como não se pode atacar a filosofia, ataca-se o filósofo.”
Devido à incontestável genialidade, beleza e fulgor da sua obra (mesmo quando só conhecemos as traduções), a estratégia heideggeriana de lançar a suspeita sobre um eventual ataque à obra através de um ataque ao autor serviu de fogo de barragem para que Heidegger se pudesse refugiar numa clareira e remeter-se ao seu célebre silêncio sobre o nazismo. Sim, fosse ele um escritor tamanco, um filósofo de opereta e um pensador estéril e talvez nada mais houvesse para discutir. Quer-se dizer com isto que será possível separar a filosofia da acção? Sob o ponto de vista de uma Hermenêutica filosófica é difícil aceitar essa separação, sem que com se isto pretenda entrar num psicologismo intencionalista, à luz do qual toda a obra fica sem futuro, envelhecida como um texto histórico, agrada a um destino já cumprido. É provável que a obra de Heidegger conheça no processo hermenêutico da sua compreensão sucessivas fusões de horizontes e que ela aponte mais o futuro do que o passado, toque a terra sem que este toque clame por botas cardadas de peludos bebedores de cerveja e nos fale da linguagem de um modo que incendeia a liberdade deste ente chamado homem, apesar da sua irredutível pertença. Isso seria a melhor justiça lançada sobre este homem que tudo indica se ter enganado vezes demais, ser mesquinho demais para a sua grandeza intelectual, e demasiado humano nos seus erros para a imensidão da sua escrita.
Resta portanto saber se há um caso Heidegger, saber se há substância digna de ser abordada para além da dimensão anedótica e, eventualmente histórica do caso Heidegger. Penso que sim: mesmo sem cair no erro intencionalista está-se diante de um enigma tanto mais interessante quanto ele for debatido no plano do pensamento: ou seja, inquirindo na busca de saber se o que escreveu, disse e não disse tinha a sua tradução possível no empenhamento político nazi. Qual é a relação marginal ou residual que nos permita dizer: quem pensava assim guardava como uma das suas possibilidades de existência o tornar-se nazi? Mais, como chegou a pensar Heidegger: o que lhe permitiu dizer a ele e a outros que a forma privilegiada de realização da sua filosofia e da historicidade como categoria central da mesma era aquela, a escolhida nos anos 30 entre o Reitorado e a Revolução Nacional Socialista?
No plano da substância histórica, o caso Heidegger está envolto em polémica inevitável. Sendo relevante pelo facto de colocar o mais prestigiado filósofo do século que findou do lado da barbárie, torna-se difícil fazer a graduação do envolvimento e sobretudo saber se essa colaboração se traduziu em actos persecutórios ao serviço da política generalizada de repressão da cultura. Terá sido puro oportunismo, ambição pessoal e mau carácter que conduziram Heidegger a esta situação? Ou há uma adesão verdadeira, sincera e convertida acompanhada por um conjunto de actos políticos não apenas de glorificação do regime nazi mas de perseguição aos colegas e a alunos por motivos raciais e políticos?
A infelicidade manifesta do livro de Victor Farias, em especial nalgumas das suas passagens mais acusatórias, constituiu um auxiliar precioso para todos aqueles que pensam que há uma espécie de estratégia persecutória que visa a Hermenêutica Filosófica. Por outro lado, desencadeou a reacção, pela menos sincera, mas claramente apologética de um François Fédier: “Gostaria de intitular este livro uma apologética de Heidegger” - diz este na sua obra. O argumento mais apologético é um apelo a uma certa paralisia do pensamento. “Lembro que sobre a sua porta, Heidegger mandara escrever um provérbio de Salomão: «Guarda o teu coração com toda a cautela porque dele brotam as fontes da vida.» Supor que um homem que se dedique a uma tal missão e, em sua existência quotidiana, se entregue a baixezas é postular que a filosofia e a vida, neste homem não tem nenhuma relação, quando na verdade a filosofa reclama essa relação; é pois atribuir uma profunda inautenticidade à maneira como Heidegger viveu. Mas não creio que seja humanamente possível ser, sem uma dor que acaba matando, quando a vida está em tamanho desacordo com o pensamento.”
O raciocínio de Fédier como todas as simplicidades bem intencionadas é uma imensa petição de princípio. Fédier supõe que a) Heidegger tinha por certo existir em desacordo profundo entre a sua filosofia e o «grande erro» cometido nos anos do reitorado. Ou seja, supõe que Heidegger se enganou e, mais, ou tem consciência desse engano ou, como quisermos, vive na sua completa ignorância, acreditando que a realização de uma revolução nacional-socialista autêntica, não a de Hitler - seria um caminho para a clareira do ser: estas são as duas únicas hipóteses que o libertam do fardo de uma dor que acaba matando enfim, de uma existência toda ela inautêntica. Ou seja, Heiddeger sabe que se enganou ou porque o nazismo não presta ou porque o nazismo real não prestava. Com efeito, a terceira hipótese é uma existência vivida na sua completa inautenticidade: uma filosofia que segue um percurso de fingidor e um filósofo que segue uma prática nazi, ou pelo menos, complacente. b) Fédier recorre ao pensamento de Heidegger para justificar Heidegger: quem pensa deste modo e quem entende que o pensamento e a acção não seguem caminhos autónomos e estanques, não pode ser nazi com consciência da magnitude dessa opção, a não ser que traia a sua filosofia.
Porém, pode-se fazer o raciocínio inverso: podemos imaginar um desses processos de fingimento de que falava Pessoa, a construção de uma identidade filosófica, literária e linguística que, passo a passo, se sabe traída pela verdade amarga da política do genocídio e mais, que por deficiência na formação da personalidade, vai optando com hesitação crescente, é certo, por um compromisso baseado em critérios de oportunidade e de ambição pessoal e filosófica; ou ainda podemos imaginar um misto dos dois, uma verdade que se alimenta de um fingimento num constante processo de luz e de sombra onde se obscurece a clareza do raciocínio ético. No limite podemos imaginar uma situação dilacerante vivida em todos os processos totalitários: o reconhecimento pontual de crimes e de exageros mas a sua omissão, esquecimento ou recalcamento a contragosto, em nome de uma verdade justificada pelo partido, pela classe, pelo devir revolucionário e pelo amanhã cantante da raça ou da sociedade perfeitas ou... pelo ressurgimento do Dasein germânico. Curiosamente, o retrato deste espírito é-nos dado por Fédier quando coloca em cena três jovens, um dos quais, vestido com o uniforme das SS, reconhece numa conversa tida em voz alta que, naquela fase, os dirigentes da revolução nacional socialista terão de ser assassinos. Então, à nossa memória afluem todas as justificações dolorosamente empilhadas ao longo da história para justificar uma violência após a qual se seguiria o advento do paraíso. Em qualquer dos casos, o argumento de Fédier é um acto de fé, e é uma especulação à qual se responde com especulação. À selvajaria hermenêutica de que acusa Farias, Fédier responde com processos simétricos: “Ah, você diz que é assim??? Pois porque não pode ser assim?”
Um dos exemplos mais evidentes a denúncia efectuada por Heidegger de um determinado colega, Staudinger, um físico que até tinha manifestado alguma simpatia inicial com o nazismo. Farias diz: “Vêem, ele denuncia”. Fédier responde: “ Ele denuncia um nazi como forma de tornar mais clara a sua intenção de não colaborar com as denúncias.” Nessa medida, a tese de Fédier, segundo a qual Heidegger correu o rico insensato de se comprometer para evitar o pior, nunca é suficientemente provada. Por se tornar, na primeira parte da sua obra, o anti-Farias, o que eventualmente podia ser uma tarefa profilática, merecedora de algum entusiasmo, Fédier expõe-se ao risco de ele próprio de seguir métodos semelhantes, não pela difamação, mas pela causa da absolvição. Ajustadas as contas com Farias, Fédier regressa a um caminho mais sereno e, finalmente, coloca as perguntas: “A aventura de Heidegger em 1933-34, vista em indulgência, aparece como um erro grave, como um fracasso total e como um compromisso carregado de consequências. A questão continua sendo esta: esta aventura pode honestamente ser vista como um crime?”. Apesar de tudo, a pergunta é complacente. Dever-se-ia acrescentar: se a aventura toma a configuração objectiva de uma certa complacência com o crime, motivada por oportunismo, ambição e incapacidade de julgamento. pode ser apenas um pecadilho, ou a própria aventura se aproxima de uma espécie de crime ainda que cometido sem dolo, isto é por negligência, sem que o agente configurasse as consequências do respectivo acto? O trabalho do Reitor Martin Heidegger não se parece, com efeito, apenas com uma boa intenção daquelas que o Inferno está cheio.
Felizmente há o trabalho de Hugo Ott Martin Heidegger: Um Caminho para uma Biografia - e a paciente compilação histórica, a contenção historiográfica e o desejo de evitar conclusões precipitadas. Não é o fim das nossas dúvidas até porque cada ente é demasiado complexo e nele refluem um suficientemente número de vagas que submergem a sua liberdade possível, para que seja possível determinar, de modo essencialista, um ser absolutamente coerente, totalmente senhor do sentido da sua acção. Porém, permite-nos identificar alguns dados sobre os quais a reflexão se torne mais do que uma mera propriedade dos clubes e das facções que, muitas vezes a contragosto dos seus actores, se constituíram no palco deste debate.
Graças ao trabalho de Hugo Ott é possível vislumbrar o jogo de pequenas perfídias diariamente empreendidas no ambiente académico alemão, pelo menos no decurso dos anos 20 e 30. Torna-se possível entender o conservadorismo que predomina no teólogo católico e a forma um tanto leviana e oportuna como se desembaraça do catolicismo para conseguir alcançar os voos que sonha empreender no entender de um universo predominantemente luterano. Encontramos, finalmente, a sua crença no pensamento nacional socialista e a fundamentação do seu empenho no seu próprio conceito de historicidade. Desenham-se as manobras que Heidegger desenvolve para chegar ao Reitorado, designadamente através da utilização do núcleo de professores nacional-socialistas para atacar, na sombra, o seu antecessor. Documenta-se cuidadosamente o modo como propõe uma nazificação mais rápida da universidade alemã, conspirando contra a conferência de reitores que ainda reunia elementos do status quo anterior e aliando-se aos dirigentes académicos que se revelavam mais identificados com um perfil nacional-socialista da universidade alemã. Nesse sentido colaborou activamente na alteração da legislação universitária de acordo com o «princípio do führer». Perfila-se o excesso de zelo com que promove, enquanto reitor, de um modo quase ridículo, o treino militar dos estudantes de Friburgo. Procede-se a uma tentativa de relato o mais circunstanciadamente descritivista possível do modo como Heidegger assediou Husserl até conseguir a sua atenção e até amizade profunda, para depois o ridicularizar, frequentemente em privado, e finalmente o abandonar nalguns momentos da complicada situação criada em 1933, à volta do filho de Husserl. Nele se desenham os traços de uma certa forma de anti-semitismo, denunciado em documentos privados por Husserl. Não certamente, o anti-semitismo, biológico, racial, e primário de Hitler e de Rosemberg mas o anti-semitismo ambíguo que permitiu a realização de um acto de fé contra a cultura “não-alemã”. Finalmente, aí se desenham as possibilidades de denúncia efectiva contra um colega e a ambiguidade para com a perseguição dirigida a outros. Assim, dá-se como estabelecida a elaboração pelo Reitor Heidegger de um relatório sobre um colega dirigido à liga de docentes nacional-socialistas onde se referem como elementos considerados pouco abonatórios a frequência do círculo de Max Weber e a sua amizade com um colega judeu, expressamente referido pela fórmula “o judeu Fraenkel”; assim como a entrega ao examinador universitário de material politicamente comprometedor para outro colega, o químico Staudinger, acompanhada da exigência do seu despedimento por motivos políticos.
Apesar de tudo, realça-se ambiguidade do seu compromisso visível na relação com Hannah Arendt e na manutenção de um assistente judeu. Por último, o Heidegger desprezado pelo Nacional Socialismo continua envolto em ambiguidade: mais do que uma desilusão, vislumbra-se uma resignação. Mais do que qualquer viragem essencial no que respeita à sua avaliação sobre o Nazismo, parecem destacar-se motivos pessoais e carreiristas entre o Reitor e dignatários nazis que se traduzem no afastamento e perda de influência crescentes por parte do primeiro. Porém, mesmo neste momento, permanecem como uma mácula do trabalho de Heidegger a recusa da atribuição de doutoramentos por motivos políticos e ideológicos, como sucede ainda em 38/39 quando assina um parecer que recusa um professorado a um filósofo cristão, chamando a sua tenção para a sua posição perante o Estado Nacional-Socialista. Porém, os nazis, na sua ideologia primária já então intuíam o que faltava a Heidegger: os insultos regressavam ao mesmo tempo que outros que tinham ficado irredutivelmente imunes ao vírus hitleriano “mesmo sem manifestações de heroísmo”; continuavam a defender a sua obra filosófica, apesar de incomodados ou discriminados em situações nas quais Heidegger participara. Faltaria a Heidegger intuir que as suas ambições e tentativas de colagem às sucessivas carruagens do poder eram, afinal, atreladas a uma louca correria para o abismo. Ora, existe uma questão que é frequentemente levantada e a que o próprio Ott alude: será que essa intuição seria facilitada pela sua própria filosofia? Ou, pelo contrário, tal intuição só podia surgir à revelia do seu pensamento?
Com efeito, torna-se necessário compreender o significado filosófico da adesão de Heidegger. Será que haveria verdadeiramente, na sua filosofia, traços que pudessem justificar um envolvimento com o nazismo? A pergunta sobre o tema é formulada assim por Richard Wolin: “(...) terá tido o partidarismo de Heidegger, relativamente à causa nacional socialista, uma relação importante com a sua própria «filosofia da existência» tal como é elaborada em Ser e Tempo e outros escritos? Se assim é qual é natureza desta relação? Quais foram as conclusões histórico-filosóficas (se algumas) que Heidegger iria retirar relativamente ao falhanço do seu próprio envolvimento nacional socialista? E, mais importante, que papel desempenharam essas conclusões na sua reavaliação das premissas fundamentais do seu projecto filosófico de 1936 em diante?” O trabalho de Wolin recolhe todos os indícios e resta saber se todos serão pertinentes. Por um lado, desenha-se em Heidegger uma repulsa pelo cosmopolitismo e uma identificação com a mentalidade völkisch das províncias do interior da Alemanha que constituiria solo fértil para a estruturação de uma concepção do mundo contra-iluminista. Heidegger, argumenta Wolin, desde cedo se inclui no antimodernismo entrincheirado na intelligentsia alemã. (Curiosamente, como alguns autores fazem questão de realçar nem Adorno escapa a esse espírito do tempo). Por outro lado, e esta é a principal linha de investigação desenvolvida por Wolin, o sentimento de crise que perpassa pela intelectualidade europeia entre as duas guerras é traduzido em Ser o Tempo por uma magia evocativa que renuncia à análise das causas sociais e culturais desse sentimento para promover uma espécie de «mimesis do destino» pelo uso imperioso e presuntivo da linguagem e da terminologia filosófica. Trata.se da crítica recenseada por Wolin em Tughendat e que reproduz aspectos da crítica adorniana de “O Jargão da Autenticidade.” Haverá, assim, que admitir, segundo Wolin, uma presença de uma forte componente revolucionária conservadora partilhada por uma parte considerável da intelligentsia alemã e que é compreensível perante uma época que tinha absolutizado a ciência no sentido das ciências exactas e que tinha sobrevalorizado a tecnologia, desvalorizando o homem. Ora para comprovar este facto, que é do domínio da interpretação ideológica, Wolin propõe-se analisar o Ser e o Tempo como um livro da sua época., designadamente chamando a atenção para aqueles traços que indiciam uma crítica revolucionária conservadora da modernidade. Ou seja, O Ser e o Tempo é olhado por Wolin como mais uma resposta ao questionamento tão especificamente germânico sobre o «declínio do Ocidente», mais um elemento da oposição entre a Kultur e Zivilisation, isto entre a sublimidade espiritual do ressurgimento do Dasein e o materialismo grosseiro do capitalismo ocidental, irmanado ao liberalismo e à democracia. Trata-se aliás de mais uma versão de um espírito do tempo que semeou as suas sementes entre a direita e a esquerda; Spengler, Schmidt e Junger, de um lado; Adorno, Benjamin, Horkheimer do outro. A existência inautêntica que percorre a quotidianeidade faz-se sentir na forma como «eles» (Das man) experimenta o tempo de modo impotente como uma sucessão de vazios, a qual só pode ser superada pelo Dasein no momento da visão. A porta de acesso percorrida, talvez com excessivo à vontade interpretativo por Wolin, para a descoberta de uma filosofia política, é a crítica heidegeriana da quotidianeidade. O alcance de uma existência autêntica só pode ser consegida através da superação do Eles (Man) e da sua inércia, pura manifestação de um modo de ser degradado que, para Wolin, através de explicações mais complexas, sugere a existência de uma aversão antidemocrática pelo mundo público. A crença de Wolin de que, para Heidegger a linguagem e a comunicação foi completamente distorcida e monopolizada por eles e remetida à esfera subalterna da inautencididade quotidiana é a desvalorização do discurso e da linguagem que páginas antes Heidegger incluíra no modo constitutivo do Mitsein. Porém, traduz a desconfiança em relação à vulgaridade do homem comum, perdido na ambiguidade, na tagarelice e na curiosidade, desconfiança esta cujas implicações políticas são, aos olhos de Wolin, distintamente duvidosas. O decisionismo heideggeriano que Wolin aproxima de Schmidt - pela qual se supera a inautenticidade - surge marcado pela escassez de determinação material, por uma espécie de arrogância tautológica que conduz a uma cegueira normativa. Finalmente o ethos nietzschiano do individualismo heróico e do voluntarismo é relativizada pois o próprio poder de decisão é que torna possível o autêntico Ser-com os outros, o qual se identifica com o destino de uma comunidade nacional. Nesta leitura, que Wolin reclama ser partilhada por Löwith,”só precisamos de abandonar a base individualista, quase solipsista para a decisão que se encontra em Ser e Tempo (...) e substitui-lo por uma orientação colectivista em que a comunidade nacional providencia a base para decisão.”
O passo seguinte, sob o ponto de vista histórico e cronológico, é a identificação com a grandeza do movimento. Finalmente, depois do fascínio que, a partir do Discurso reitoral, Introdução `Metafísica e os Hinos de Hölderlin parece constituir um elemento estrutural de uma certa fase do seu momento filosófico, o que sobrará é, na perspectiva de Wolin, um pessimismo resignado, uma declaração de impotência segundo a qual só um Deus nos pode salvar. A convicção filosoficamente fundada que só um ressurgimento do Dasein Alemão nos pode salvar arruína-se e dá lugar a uma espécie de recolhimento poético, que seria injusto remeter para razões meramente circunstanciais. O nosso abandono pelos Deuses remete todo o pensamento heideggeriano para uma imenso silêncio sobre a política.
Apesar de se avisar o leitor para o facto de Wolin é mais complexo e subtil na sua argumentação do que aquilo que possa transparecer nesta modesta recensão, convirá fazer alguns avisos: a) Ser e Tempo é inscrito numa generalização do pathos apocalíptico que afecta toda a intelectualidade alemã, de direita e de esquerda; b) a desconsideração do quotidiano e da vulgaridade da inexistência quotidiana é uma crítica que é frequentemente dirigida à quase totalidade da obra de Adorno, nomeadamente para explicar a sua incapacidade para compreender ou sequer, sentir a mínima sedução pelos valores normativos do Estado de Direito; c) a desconsideração da publicidade moderna afecta a todos por igual, de Adorno a Arendt e até, se bem que de modo diverso, o primeiro Habermas; d) da argumentação de Wolin só parece sobrar como específica a acusação de decisionismo e a identificação desse decisionismo com uma determinada prática histórica concreta. Bem ao invés, o desenraizamento dos intelectuais alemães que se postularam de outro lado da acultura e do pensamento político, nomeadamente Adorno, deram-lhe a imunidade da desconfiança: não é por acaso que o exílio é um elemento fundamental da “Dialéctica do Iluminismo”. O que faltou a Heidegger terá sido desconfiança, recusa do compromisso. Sobrou-lhe fascínio pelo destino e, talvez por isso, seja a sua permanência numa pátria mítica que seja uma das chaves do seu silêncio, do seu prolongado, teimoso e incessante silêncio. Aqui se inscreve a reflexão de Lyotard: “Como é que esse pensamento (o de Heidegger) tão dedicado a relembrar o que há de esquecimento ( do ser ) em todo o pensamento , em toda a arte, em toda a representação do mundo, pôde ignorar o pensamento dos judeus que num certo sentido não pensa, não tenta pensar senão isto - o esquecer e o ignorar, ao ponto de calar até ao fim, de proscrever a tentativa horripilante ( e inane) de exterminar, de fazer esquecer para sempre aquilo que na Europa relembra, que há «o Esquecido».” A reflexão de Lyotard não se acolhe na acumulação de factos: “Fica-se arrasado com que Heidegger possa até pensar militar no NSDAP em 1933, a despeito, e mesmo por causa, dos desacordos que tem com esse partido, oferece-se-lhe uma «oportunidade»de fazer alguma coisa, de efectuar o quer que seja, a coberto de um movimento já famoso pelo seu cinismo e pelo uso que fez do terror. Arrasado ainda mais pelo que essa alguma coisa tenha aos seus próprios olhos, e deva ter aos nossos, alguma relação com aquilo que escreveu em Sein und Zeit. Este arrasamento chama-se angústia: o maior pensamento pode prestar-se como tal ao maior horror.” Convicto de que para um pensamento desta circunstância não há atenuantes, Lyotard também ele desenvolve a ideia da falha: “para que a circunstância possa manobrar o pensamento a esse ponto, é preciso que a sua força de questionamento, a sua capacidade de «responsabilidade», tenha falhado gravemente.” Aceitando de bom grado que Heidegger não é nazi como Goebbels ou Rosenberg , Lyotard considera que qualquer dedução do nazismo heideggeriano a partir de Ser e Tempo se assemelha a uma momice das instruções de um processo de Moscovo. Porém, simultaneamente, ao rejeitar as aproximações desencadeadas por Farias, e que caminham na sua senda, Lyotard não permanece na cegueira apologética. Sein und Zeit não é uma obra apolítica: “a «política» heideggeriana efectua, age um pensamento que, tal como está escrito em Sein und Zeit, a permite sem de todo a necessitar.” Por isso, há uma falha, é preciso detectar aquilo que a esse pensamento falta e esquece pelo facto de permitir essa política. Finalmente o silêncio de Heidegger é, ele próprio, manifestação dessa insuficiência: “ele esqueceu o extermínio.”
Regresse-se a Fédier para citar a nota de Merleau-Ponty inserida num número de Les Temps Modernes (1 de Janeiro de 1946): “A imprensa francesa tem-se referido a Heidegger como a um nazi: é verdade que ele se inscreveu no partido nazista. Se fosse o caso de julgar a respeito de uma filosofia pela coragem ou lucidez política de um filósofo, a de Hegel não teria muito valor. Sucede que o filósofo é infiel ao seu melhor pensamento quando chega às decisões políticas.” Na verdade, no caso de Heidegger não é tão simples como isso. Porém, felizmente, o pensamento de Heidegger, como o de qualquer homem mas em especial daquele que é um grande pensador, é sempre muito, muito mais do aquilo que ele pensa que quis dizer. Infelizmente, por vezes, é menos do que aquilo que ele e pensa ter dito.
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