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Recensão por: Luís Carmelo
Falta título
O saber como mediação, o espaço como intriga
Por Luís Carmelo
Carlos J. F. Jorge, Jules Verne - o espaço africano nas aventuras da travessia, Cosmos, Lisboa, 2000.
Nos textos clássicos de cariz profético, uma voz, dotada de omnipresença e de pré-conhecimento absoluto, comunica a uma outra voz, associada a um nome geralmente simbólico e no quadro de um relato primeiro, um determinado saber. Esta competência, entre outras secundárias, manipula a expansão fundamental dos mundos possíveis do profético e acaba por inscrever, à superfície desse tipo de textos, uma topografia e uma espacialidade que parecem, a todo o momento, sobrepor-se àquilo que deveria ser a grande inquietação clássica do horizonte de expectativas do género: o cronograma da salvação. Ou seja: quando é que vai ter lugar o que Deus, por interposta voz, anuncia - ou terá, alguma vez, anunciado - à humanidade ?
No seu Jules Verne - o espaço africano nas aventuras da travessia (Cosmos, Lisboa, 2000), Carlos J. F. Jorge refere que a "ordo naturalis" do texto é a temporalidade, enquanto, por paradoxo, o devir da literatura aspiraria sobretudo a uma reposição mimética (espacial) do mundo no literário que o representa (ver pg.25). Para Verne, de acordo com a perspectiva de Carlos J. F. Jorge, o saber apareceria, homologicamente, como uma solução para tal paradoxo. Isto é, o espaço descritivo, nos textos de Verne, acabaria por superar a encenação ficcional do realismo-naturalismo, dominante na época (ver pg.59), ao suprimir as fontes de relatos anteriores e, simultaneamente, ao recorrer a elas, sob a forma de factos que aparecem transpostos na voz (enunciadora) de um saber magistral e enciclopedicamente pré-adquirido. Esta montagem traduz, por outras palavras, a divinização do positivismo e a passagem da lógica pré-moderna do ex-eventum para a lógica dos jogos intertextuais modernos.
Do mesmo modo que, nos antigos textos do género profético, os espaços urbanos ou naturais (da tradução judaico-cristã e islâmica, respectivamente) acabam por constituir o eldorado da intriga, em contraposição com o nubloso e sempre ocultado cronograma salvífico, também, na descrição de Verne, é a peculiar construção das estruturas descritivas (sistematizadas no segundo capítulo do ensaio) que conduz Carlos J. F. Jorge a concluir que, em Verne, "não há outra intriga senão a de fazer a descrição do mundo" (93). Interessantes correspondências e, porventura, nada inocentes.
Este é provavelmente o grande problema que Carlos J. F. Jorge apresenta e tenta a resolver no seu ensaio, Jules Verne - o espaço africano nas aventuras da travessia, e que, no fundo, diz respeito ao posicionamento dos cinco primeiros romances de Verne no âmbito da codificação ficcional da sua época. O espaço descritivo domina, pois, a sequência analítica que aborda, em primeiro lugar, os "espaços não experienciados" e os próprios "processos descritivos" (capítulos I e II), para, de seguida, se concentrar na discussão central do ensaio, isto é, na relação tácita e complexa entre as modalidades de inscrição descritiva e o papel decisivo da mathesis (capítulo III).
O último capítulo (IV) ocupa-se das visões do mundo que são filtradas no texto descritivo verneano, recorrendo a conceitos como os de "ideologema", "aparelhos normativos" (Hamon) ou "ideológicos" (Althusser), assim como à noção de linearidade, tendo como fundo a figuração do Outro. A "geometrização" do território ou, como diria Deleuze, os "blocos estriados" do espaço e do saber, tal como eram enunciados pela monocularidade ocidental ainda crente na modernidade, constituem-se, no final do ensaio de Carlos J. F. Jorge, enquanto metáfora de um mundo que doma todas as suas potencialidades e em que o espaço selvagem é sempre "um espaço a controlar" (e é, portanto, uma ameaça).
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