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Recensão por: Andreia Fernandes Silva
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O livro “A Ética da Comunicação e os Media Modernos” contempla a análise da estrutura da Comunicação Pública numa perspectiva simbólica, ao mesmo tempo que funciona como um olhar atento sobre o campo dos media e a sua relação com os restantes campos da sociedade. O autor, com vasta obra publicada sobre a matéria, elabora uma reflexão sobre o papel central que compete à comunicação e à informação no reordenamento da vida colectiva, tendo em conta as transformações introduzidas pelos media tecnológicos no complexo processo de transmissão de cultura.
O motor de toda a obra, resultado da tese de doutoramento do autor defendida em 1995, debruça-se sobre os problemas éticos e morais inerentes ao processo comunicativo que estão na base da formação da Opinião Pública e tem o mérito de levantar algumas questões, embora ainda sem resposta, para que se inicie uma saudável reflexão sobre uma matéria ainda muito pouco discutida na sociedade portuguesa.
O livro está dividido em quatro partes centrais. Começa pela Investigação Crítica e Comunicação, onde se faz uma apurada reflexão em torno da Teoria Crítica e a sua importância na análise que hoje se faz do campo dos media, sendo mesmo dedicada uma pequena parte ao papel da teoria crítica no actual panorama das ciências sociais, donde sobressai uma postura mais compreensiva e dialógica, uma espécie de correcção às ideias propaladas pelos primeiros pensadores da Escola de Frankfurt. Segue-se um apanhado da primeira proposta da denominada Mass Communication Research que se debruçou na problemática dos efeitos, o Modelo do Fluxo em Duas Etapas, Two Step Flow, surgida na década de 40 em alternativa à teoria hipodérmica, - também designada de balas mágicas, que considerava os meios de comunicação de massa como sendo os promotores de uma opinião pública amorfa e desprovida de sentido crítico.
Num segundo momento, Pissarra Esteves aborda “A Teoria dos Campos Sociais e a Opinião Pública”, tendo como fio condutor, - para a tentativa de explicação do papel da comunicação nas sociedades modernas -, a teoria dos campos sociais, “uma proposta original de compreensão das estruturas sociais”, no entender deste especialista na área da Sociologia da Comunicação. Nesta parte o autor refere-se à comunicação pública inserida numa ideia de modernidade, ao mesmo tempo que é feita a referência ao problema ético em ligação com duas noções: o espaço público e a opinião pública.
Segue-se, num terceiro momento “A Ética e a Moral da Comunicação no Mundo Moderno”, a parte na qual Pissarra Esteves estabelece a relação ética/comunicação, quer através do diálogo necessário da ética com a moral mas também da noção de ética associada ao conceito de liberdade, tendo por detrás a noção de justiça.
O autor finaliza com “Poder e Comunicação” onde faz uma abordagem à necessidade de instituir a ética no campo da política, espaço onde a prática democrática do poder seja um objectivo concreto e não uma aspiração teórica. O autor sintetiza ainda a ideia que subjaz toda a investigação de que a comunicação desempenha nas sociedades modernas o melhor método para alcançar a justiça social e promover a autonomia individual.
De notar também que o livro publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian, neste caso em segunda edição, apresenta inúmeras gralhas.
A análise
Esta recensão não pretende fazer uma análise total à obra e às diferentes dimensões abordadas, teve, isso sim, como fio condutor a selecção de alguns pontos focados por João Pissarra Esteves no que diz respeito ao campo dos media. O autor empreendeu, ao longo de quase quinhentas páginas, uma análise aprofundada do campo dos media, aqui entendido como possuindo funções de mediação de ordem simbólica, ao mesmo tempo que é um dos campos sociais que “assume uma posição central no mundo moderno” (p.148).
Convém desde já esclarecer que embora o campo dos media não deva ser encarado apenas como sinónimo de mass media (p.145) é inegável que “os mass media continuam de forma sistemática a alimentar e a revitalizar este campo social, recordando e mantendo viva a sua origem”, advertências do autor (Esteves, 2003: 147).
Tendo como referência o pensamento político de Jurgen Habermas, (uma das referências na análise dos processo de formação da Opinião Pública), Pissarra Esteves trilha uma aprofundada reflexão pelos meandros da comunicação pública a partir de dois pressupostos. Primeiro ao ter como objectivo a procura de um campo próprio para a reflexão sobre a ética e a moral na Sociologia, uma área ainda pouco explorada do ponto de vista científico e, em segundo lugar, ao referir-se ao confronto dos grandes problemas éticos e morais da actualidade causados pelas “interferências” dos diferentes campos no campo dos media.
O autor tem como ponto de partida para esta viagem em redor das problemáticas ético-morais duas teorias de base: a teoria liberal clássica da imprensa promovida por Bentham, Mill ou Tocqueville e a filosofia de serviço público. No primeiro caso destaca-se a necessidade da existência de uma imprensa livre, a formação de um público esclarecido e a denúncia dos abusos do poder. No segundo caso é a “aposta” numa ideia de qualidade e diversidade que deixe de lado a vertente comercial. Se no primeiro se sabe que o ideal de “liberdade” proporcionou a mercantilização dos media, o fecho de jornais e o acesso cada vez mais selectivo ao mercado, no segundo verificou-se não só uma centralização burocrática da direcção dos meios de comunicação social, como também, se assistiu e, acrescente-se ainda se assiste, a uma certa promiscuidade entre o poder instituído e o funcionamento do campo dos media.
Pissarra Esteves assume como ponto nevrálgico de todo o processo de comunicação pública a “dimensão da responsabilidade inerente a todo o comportamento moral” (p. 13), referindo-se ao papel dos agentes sociais em serem capazes de criarem os seus próprios comportamentos morais e por eles serem regidos. Desta forma, o autor entende a responsabilidade como “uma vivência social continuada”(p.13).
Toda a fundamentação teórica do livro assenta no chamado domínio do exercício da razão prática, através da referência à racionalidade exigível ao nível da ética, uma vez que, de acordo com Pissarra Esteves, a justificação racional deve conferir sentido ao comportamento.
O campo dos media ao assumir-se como uma instância fundamental de moderação social “garantindo uma certa homogeneidade do tecido social” não pode ser entendível à luz de uma “delimitação objectivista”, algo difícil de concretizar, no entender do autor (p. 144).
De acordo com Pissarra Esteves o campo dos media reforçou o seu papel nas sociedades modernas ao assumir “uma forma multifacetada e polimorfa” (p.145), causada também pelo surgimento de tecnologias de comunicação, o que exige uma reformulação do entendimento da comunicação mediatizada e da opinião pública, uma vez que “as redes mediáticas dimensionam a comunicação a nível planetário (…) libertam-na dos seus limites tradicionais (espaço e tempo)” (p.60). As mudanças tecnológicas têm vindo a mudar a noção tradicional de espaço público, uma vez que este agora se apresenta de modo simbólico, virtual e reticular, características já anteriormente defendidas por Adriano Duarte Rodrigues e que o autor do livro em análise reitera.
Na verdade, os processos de mediação social são aqui entendidos sob o prisma da tensão permanente que existe entre o campo dos media e os restantes campos sociais, nomeadamente a ameaça da hegemonia dos media que paira sobre os restantes campos, uma situação à qual o autor apelida de “duplo problema de legitimidade” e que leva a que este “espaço eminentemente conflitual” seja palco permanente da chamada violência simbólica, aqui entendida, tal como a noção de campos sociais, à luz das ideias divulgadas por Pierre Bourdieu.
Pissarra acentua ainda a ligação, hoje indissociável, quando se fala do campo dos media, à procura do lucro e das solicitações de serviço público (p.151). De acordo com a reflexão empreendida pelo autor a aspiração à autonomia, por um lado, e as ameaças de instrumentalização, pelo binómio mercado/ estado, por outro, têm promovido situações de desregulação que não são as mais desejáveis. Esta tensão Estado/ Poder e Mercado/ Dinheiro é que está na base dos problemas ético-morais dos nossos dias. Na verdade, se o “reforço do dinheiro como principal dispositivo de regulação dos media” continuar a prevalecer assistir-se-á a um esvaziamento completo da credibilidade de determinados campos sociais. Algo que podemos acrescentar já está a acontecer na actualidade quando a opinião pública se manifesta como descrente da Justiça, Política e dos Media.
Sob esta matéria convém também não esquecer que “os mecanismos de controlo (sobre os mass media e dos mass media) são uma ameaça real, canalizam os fluxos de comunicação em estruturas hierarquizadas e numa rede centralizada, mas ainda assim com as suas fraquezas e efemeridade: podem sempre ser desactivados pelas estruturas comunicacionais que continuam a fluir nas redes mediáticas (59-60).
A abordagem do autor contempla as relações, tensas e conflituais, entre os campos político e dos media, fazendo referência a situações como o controlo político directo, a sedução permanente estabelecida e consentida pelas duas partes e as “intromissões subtis” que são o culminar de um conjunto de interesses. A dada altura, Pissarra Esteves lembra que “o campo político cria condições para transformar os media em instrumentos de acção política” (p.154). De referir ainda que o último capítulo da obra se dedica em exclusivo ao poder, entendido como motor da realidade política, tal como o entende António Teixeira Fernandes. Em análise, o autor apresenta a perspectiva de Foucault na ligação poder-subjectividade e de Parsons e Luhmann, na perspectiva sistémica de entender a ligação poder-comunicação.
O autor entende que a tensão criada entre os diversos campos sociais e o campo dos media tem implicações directas na própria estrutura interna e no funcionamento do campo. Em primeiro lugar pelo facto de o corpo social dos media obedecer a uma estrutura hierárquica mais ténue e efémera que a estrutura dos outros campos sociais, caracterizada como sendo “mais informal, provisória e instável” (p.155).
Atento às novas realidades da sociedade actual são referidas as operações multimédia que estão a agitar e a reformular o campo dos media. No entender de Pissarra Esteves estas têm como propósito a inculcação de “processos originais de integração de diferentes práticas comunicacionais” (p.156), nem sempre acompanhadas de comportamentos éticos.
Para Pissarra Esteves esta fragilidade do campo dos media acentua-se com a capacidade de interferência que os outros campos sociais podem ter na dinâmica do campo dos media, algo bem visível não só na precariedade laboral, mas também na já referida efemeridade do cargo de direcção. Em simultâneo, é no seio desta flexibilidade estrutural que reside a capacidade de reajustamento e substituição rápida no campo.
Pissarra Esteves lembra ainda as trajectórias de mobilidade social que o campo dos media proporciona ao funcionar como “trampolim de carreiras em outros campos”.
Outro dos pontos focados pelo autor é a ligação do campo dos media à sociedade através da “disseminação dos seus processos rituais pela generalidade do tecido social”, não só pela especularização de tudo, mas também pelo facto de o campo dos media imprimir uma certa ritualização. Como exemplo está a televisão que assumiu um papel de agente socializador, com capacidade ainda de marcar a agenda das famílias (155-160).
Outros campos sociais “mantêm sempre viva a tentação de poder conduzir/ manipular o campo dos media segundo os seus interesses”, recorda o autor (p. 164). É nestas alturas que o campo dos media reage de modo agressivo, pois se por um lado “o campo dos media procura impor a regularidade no seu funcionamento” por outro, a intromissão dos outros campos sociais exige a aceleração do funcionamento do campo dos media, de modo a este conseguir manter a sua autonomia. Ou tal como lembra o autor em nota de rodapé, recorrendo a um exemplo da política nacional: “Perante a agudização das tensões e o clima de ameaça, o campo dos media acelerou o seu funcionamento, tornando-se mais agressivo, por forma a poder preservar a sua autonomia e continuar a fazer valer os seus valores” (2003: 162).
Ao longo de toda a obra em análise há a referência aos problemas éticos e morais já anteriormente mencionados. Muitas vezes com a deontologia a assumir-se como sendo a peça chave da ideologia do profissionalismo “o seu discurso de superfície assume a intencionalidade ética de projectar os media como instrumentos fundamentais da democracia – com base na função e num conjunto de valores de referência (neutralidade, verdade, objectividade, distanciamento, etc) (p.22), uma situação que no entender do autor está longe de ser a ideal.
Neste sentido, o campo dos media permite, isto é, autoriza a intromissão dos restantes campos quando chama especialistas a comentar dadas situações ou a participar em debates. Por um lado, verifica-se o “reconhecimento da competência específica de cada um”, mas, por outro, aumenta a complexificação dos assuntos, e a própria interpretação através da justaposição de diferentes opiniões. O autor reitera a ideia do espectáculo como mentora deste processo através do “jogo mediático de neutralização das posições divergentes, pelo constante «dar» e «retirar» a palavra (p. 166) e pela permanente dicotomia real-simulacro.
O autor conclui que o conhecimento crítico sobre o espaço público e a vida social só se torna possível através da análise cuidada sob o prisma da dimensão ética. No entanto, daqui não se podem tirar ilações seguras e exactas de um processo que exige a junção de diversas dimensões, a ponderação entre a comunicação e a razão prática e também as características intrínsecas dos indivíduos e da sua própria evolução na sociedade.
Pissarra Esteves não esquece o reconhecimento da comunicação como matriz política da sociedade, algo que o autor fez ao analisar os desafios da modernidade lançados pelo desenvolvimento social, não só pelo aparecimento das novas tecnologias que imprimiram uma nova dinâmica e rotinas no campo dos media mas também pelas mudanças ocorridas nos outros campos sociais. Desta contaminação de ideias, pensamentos e práticas entre todos os campos da vivência social resulta uma amálgama que deve ser dinamizada pela reflexividade permanente. É a partir deste conjunto de ideias que, no meu entender, se deve começar a reflectir, não só no sentido de se conhecerem os mecanismos que manobram o campo dos media e consequentemente enformam a opinião pública, mas também, a necessidade de se trazer para a opinião pública a discussão em torno da ética agregada à noção de comunicação.
No final do livro, Pissarra Esteves lembra que “os interesses particulares marcam de tal forma a democraticidade e o pluralismo do mundo moderno (…), que não é já possível pressupor idealmente a diferenciação perfeita e inequívoca entre estes mesmos interesses (individuais) e a vontade colectiva”. Daqui resulta a imperatividade de reequacionar e questionar permanentemente a ética da comunicação, não como até agora foi entendida, mas sim à luz das novas realidades que a contemporaneidade inseriu na sociedade.
O autor:
A presente obra em análise resulta da tese de Doutoramento em Ciências da Comunicação na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, defendida em 1995 por João Pissarra Esteves que é, desde 1987, professor na mesma instituição de ensino superior. Colaborou com diversos organismos enquanto investigador com passagens pelo Centro de Estudos de Sociologia, Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens e o Centro de Investigação Media e Jornalismo.
João Pissarra Esteves publicou e proferiu diversas comunicações sobre a temática da Opinião Pública, Democracia, Comunicação e Identidades. Dos livros da sua autoria destaca-se um importante conjunto de textos sobre a Opinião Pública, os efeitos dos media e a Ética na Comunicação. Entre os mais conhecidos destaque para A ética da comunicação e os media modernos (1998) e Espaço público e Democracia: comunicação, processos de sentido e identidades sociais (2003), bem como a selecção de textos e prefácio das obras Niklas Luhmann: A improbabilidade da comunicação (1993) e Media e Sociedade: os efeitos sociais dos Meios de Comunicação de Massas.
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