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Recensão por: Joaquim Carlos Araújo
Premonições Económicas
Premonições Económicas
Por Joaquim Carlos Araújo
Título: L’illusion Économique. Essai sur la Stagnation des Sociétés Développées
Autor: Emmanuel Todd
Editor: Gallimard
1998, 323 pp., 20,5x14 cm
PREMONIÇÕES ECONÓMICAS
Este excelente estudo de Emmanuel Todd, constitui-se, muito provavelmente, como a análise socioeconómica mais bem conseguida do ano, e talvez uma das mais importantes do fim do século passado. O Professor Todd, Doutor em História na Universidade de Cambridge, e diplomado pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris, estuda as questões sociais pelo menos desde 1976, altura em que editou uma famosa obra, La Chute Finale, onde preconizou a implosão do sistema soviético.
Com uma linguagem acessível ao vulgo e uma sintaxe ligeira, o que desperta a curiosidade pela página seguinte e impede a enfadonha leitura, o autor estabelece as relações entre os grupos sociais ( v. g. a família; o proletariado; os imigrantes; etc.) e os sistema ideológicos (nomeadamente o «capitalismo integrado» ou «souche», «primário», na sua terminologia); bem como entre os preconceitos culturais e as suas imanentes contradições axiológicas e económicas. Todd, aposta, antes de tudo, numa contundente luta contra a ignorância, e, por outro lado, contra a suposta racionalidade das análises estatísticas e matemáticas que caracterizam muitas das justificações económicas do actual status quo europeu, americano e japonês.
A alusão ao Mito do Bezerro de Ouro - aquele que abandona Deus corre para o dinheiro!... - permite explicar a ruptura, a queda das ideologias e / ou das religiões, o «frenesi de acumulação monetária» referido por Max Weber. A fusão monetária de Maastricht, que pretende abolir as nações, atribui ao dinheiro o estatuto de um novo criador, um Deus que pode levantar e recriar o mundo actual, quer dizer, um «Deus-dinheiro-único». Esse «misticismo monetário» é analisado de um modo bastante profissional e sem reservas subjacentes aos academismos estéreis dos partidos políticos arautos da boa nova (cf. Du monothéisme au monétarisme, p. 210 e ss.).
A explicação pela via demográfica, considerando ao mesmo tempo o trabalho assalariado e o desemprego, a segurança social e a saúde, assim como todas as nefastas consequências do um orçamento comum a muitos países, leva o historiador a relembrar o seguinte (pp. 209-10):
«Compte tenu des interactions puissantes et innombrables qui existent entre le bubget de l’État, pris au sens large, et la monnaie, dans des pays où 40 à 60 % du PIB sont absorbés ou redistribués de manière centralisée, une monnaie commune supose une gestion budgétaire commune. Mais l’inégalité des chocs démographiques rend invraisemblable l’idée même d’une gestion bubgétaire commune aux diverses sociétés. La monnaie unique ne peut donc être q’ une grandiose absurdité. Le traité de Maastricht, cependant, existe. Il a été négocié, accepté, voté parfois. Il est assez largement responsable de l’aggravation des taux de chômage européens dans les années 1992-1997. Dénoncer son irréalisme n’est pas nier sa réalité. Le devoir de l’ historien est aussi d’ en expliquer la genèse».
E noutra vertente, a antropo-ideológica, demonstra-se que o projecto maastrichtiano é, na verdade, «primário» e «católico», resultante, enfim, dos valores familiares da autoridade e da desigualdade, inspirados principalmente, na França periférica e na Alemanha religiosa e familiar profunda. Maastricht substitui, pois, a fé cristã que se tem vindo a desvanecer desde os anos 60. Na verdade, sabemos hoje em dia que a Europa sofre uma crise de identidade material e social...
Todd, estudioso da história das regiões antropológicas de famílias recentes, nomeadamente em dois outros estudos, ambos editados na Le Seuil - La Troisième Planète. Structures familiales et systèmes idéologiques (1983) e L´ enfance du Monde. Structures familiales et développement (1984) - define e caracteriza, de um modo claro e distinto, os substractos antropo-ideológicos familiares de vários países. Por exemplo a França, com as suas duas tradições: individualismo igualitário e diferença social; a Alemanha e o Japão, onde os valores da disciplina familiar primária se mantêm; e os Estados Unidos ou a Inglaterra, onde os valores da família nuclear absoluta criam um temperamento liberal extensivo a todas as classes culturais e económicas (cf. pp. 224 e ss.).
No que respeita a Portugal, os dados são menores. No entanto, somos igualmente privilegiados com algumas conclusões dos estudos de Todd. Por exemplo, num dos quinze documentos apresentados, quase todos eles quadros estatísticos, onde se expõem «Tipos familiares e fecundidade», Portugal alinha-se com a Itália e a Espanha no tipo antropológico «Mutação do estatuto da mulher» (apresentando, por curiosidade, um «índice sintético de fecundidade em 1995» de 1,5 superior aos outros dois países latinos). Aponte-se que os Estados-Unidos, a Austrália, o Canadá, O Reino-Unido entre outros, figuram no tipo, «Família nuclear absoluta»; o Japão, a Alemanha, Coreia do Sul, entre outros, no de «Família primária» e a França e os Países-Baixos no de «Tipos familiares nuclear e primário combinados». Também num outro capítulo, intitulado «L´Utopie libre-échangiste», e para desconstruir a apetência dos dirigentes políticos ocidentais pelo mito ricardiano «totalmente arcaico» da livre-troca, aponta-se o famigerado comércio de Portugal com a Grã-Bretanha que, durante dois séculos, ao trocarmos vinho por têxteis, apenas produzimos o nosso subdesenvolvimento económico. Refere-se, ainda, o Norte de Portugal, região fortemente católica até 1980 (p. 212), como bom exemplo do «movimento de refluxo» que afecta o catolicismo (cf. Cap.VIII, p. 226) - já no capítulo segundo se tinha igualmente feito notar as «estagnações significativas», do ponto de vista cultural, imediatamente a seguir à contra-reforma católica (p.45), contrariamente, por exemplo, à Reforma Protestante que possibilitou o acesso democrático de todos os fiéis aos livros sagrados, e consequente progresso económico e ascensão política.
No entanto, o que encontramos com alguma veemência neste estudo, o que o torna muitíssimo interessante, são os primeiros dois capítulos («Éléments d’anthropologie à l’ usage des économistes» e «Un plafond culturel»). Aqui assistimos a um delicioso exame das Ciências Económicas pelas Ciências Humanas, se assim o podemos afirmar. Todd, que já tinha estudado a questão da alfabetização da Europa na sua obra L’ invention de l’ Europe (Le Seuil, 1990), diz-nos que por volta de 1900 a «Europa protestante era massivamente alfabetizada»: a Prússia e a Suécia (100%), um pouco menos na Inglaterra (85%), devido à depauperação das populações rurais e industriais. Por seu lado, os Estados-Unidos, pertencendo à «fracção avançada da humanidade que é o mundo protestante», cuja matriz originária é obviamente inglesa e calvinista, tudo ganharam com os imigrantes da segunda metade do século dezanove, estes já sabiam ler e escrever. Em 1900, 95% dos americanos brancos e 60% de americanos negros eram alfabetizados, proporções largamente superiores a Portugal, Itália do Sul ou Espanha. Nos anos de 1966-1970, anos de optimismo americano (e ocidental), apesar da guerra do Vietname, um jovem americano entre os 20 e 25 anos (30% dos jovens eram universitários ou licenciados) possuía uma crença activa na vida e na humanidade baseada numa esperança de evolução ilimitada. Foi o boom dos anos sessenta, tal como o conhecemos hoje.
Mas a América encontra-se, actualmente, emersa num atavismo cultural sem precedentes, mostrando bastas vezes, um «carácter regressivo» e «irresponsável» na sua gestão, associando-se também este facto à queda do nível intelectual das camadas superiores da sociedade entre 1963 e 1980 (cf. p.300). Todd mostra-nos alguns gráficos (p. 49 e ss.): «O recuo da educação superior nos Estados-Unidos» e «A queda do nível intelectual americano». Desde 1980, principalmente, os níveis de licenciados e bacharéis diminuiu tanto nos homens como nas mulheres. E, de acordo com o SAT («Scholastic Aptitude Test»), apesar das suas limitações advindas da impossibilidade de se considerar uma amostra absolutamente representativa, as aptidões verbais e matemáticas seguiram o mesmo caminho. A linha do gráfico começaria a atingir o seu extremo em 2000. Escreve Todd : « On ne peut comprendre, si l’ont n’est pas conscient de ce tassement éducatif, les multiples phénomènes régressifs qui affectent la vie américaine des décennies 70, 80 e 90: les difficultés économiques, la provincialisation intellectuelle et artistique, l’émergence d’un cinéma rapide et violent, le développement de sciences sociales et historiques absurdes mettant au cœur de leurs préoccupations le conflit entre hommes et femmes (gender studies), l’obsession du harcèlement, la remise en question de l’avortement, le retour des créationnistes hostiles à Darwin et à l’évolution des espèces, le pourrissement juridique et répressif, avec un nombre d’individus purgeant des peines en prison ou ailleurs, passant, entre 1980 et 1993, de 1 840 400 à 4 879 600. Le retour massif de la peine de mort exprime mieux que tout autre phénomène la régression spirituelle qui touche la société américaine : le nombre de détenus qui attendent en cellule leur exécution passe, entre 1980 et 1994, de 688 à 2 890. Cette modernité se dissocie effectivement de l’idée de progrès» (pp.51-2).
A conclusão de Emmanuel Todd («La croyance et l’ action économique») demonstra-nos o seguinte : a crença numa economia omnipotente é uma ilusão. Com efeito, a estagnação do nível cultural americano, o choque malthusiano no mundo desenvolvido e o despertar de uma recente estratificação cultural que exorta à percepção desigualitária da vida social, abre um campo para além de uma simples crise económica, permite uma crise de civilização. A ilusão de uma globalização (que é, tão-só, uma hipótese abstracta) e a moeda única são políticas com duas lógicas divergentes. Na verdade, nenhum sistema económico funciona bem hoje em dia. A juntar à estagnação cultural americana, ao envelhecimento da população japonesa e às contradições da economia alemã, teremos, respectivamente, o défice comercial, a estagnação industrial e as fantasias políticas do euro. Um euro forte não poderá enfrentar, inconsequentemente, o dólar ou o yen. Os próprios americanos sabem que nós sabemos que o euro não trará nenhum benefício à situação económica europeia - aliás a moeda única já existe, é a «ligação franco-marco» (cf. p. 309). O deixa-fazer, deixa passar em versão moderna, apenas permitirá uma cada vez maior concorrência maioritariamente desleal entre as populações do planeta. Por exemplo, nos anos 80, tal fenómeno conduziu a uma forte ameaça das indústrias dependentes da mão de obra, aumentando as taxas de desemprego dos trabalhadores menos qualificados. Podemos afirmar que, no fundo, hoje acontece o mesmo, alargando o desemprego não só aos trabalhadores menos qualificados, pois, assistimos, cada vez mais simplesmente, às grandes fusões do capital e aos milhares de desempregados que cada uma delas produz. A crise sociopolítica esta aí! Ela resulta(rá) da «convergência psicossocial entre a livre-troca e a moeda única», motivada pela «ausência de sentimento colectivo» - eis o que Todd chama o «pensamento zero de 1998» (cf. p.309). A «utopia monetária» irá estilhaçar as economias reais. Mas, a Europa, apesar de possuir uma economia lenta (por causa do envelhecimento da sua população), está na altura de assumir o seu primordial papel mundial no que respeita à ciência e à tecnologia.
O retorno à ideia de «nação» encerra o estudo de Emmanuel Todd. Só a apologia de uma crença colectiva, forte e estruturante, pode, por seu lado, favorecer o fortalecimento dos indivíduos, torná-los igualmente estruturantes de uma nação. É o que demonstra a história mundial, «o indivíduo apenas é forte quando a sua colectividade é forte» (p.313). Temos assim, vários exemplos de «crenças colectivas razoáveis» : Atenas para Péricles; Roma para César; a França para Napoleão; a Alemanha para Lutero; e nos Estados-Unidos, o declínio do sentimento nacional explicou a passagem de Lincoln a Reagan; etc. Mas, eslarece-nos o historiador : «Certains effets positifs sont apparents, dont l’attachement à la liberté qui rend l’hypothèse d’un totalitarisme à l´ ancienne inconcevable. Mais pour l’essentiel, la réalité que nous observons est une réversion intellectuelle, le spectacle fantastique de classes supérieures européennes aussi égarées que celles des années 30, dont le déflationisme avait tant fait pour encourager la montée des fascismes. Nous vivons une extraordinaire leçon : l’ histoire nous dit que l’ homme, lorsqu’ il ne se pense plus comme membre d’ un groupe, cesse d’ être un individu» (p.314) .
E a aposta é num novo homem capaz de dominar a história, através de uma política de «proteccionismo inteligente» para além da preocupação com a flexibilidade da moeda, para além do tom ultraliberal actual da livre circulação do capital. Não obstante, estas duas últimas, a moeda flexível e a liberdade capitalista, são verdadeiramente possíveis de combinação com um proteccionismo racional, estabelecendo-se, assim, os requisitos prévios para uma contundente defesa (protecção) dos serviços públicos e da Segurança Social. Ora, tal regresso ao proteccionismo pressupõe, para o autor, uma concepção de igualdade e colectividade. Como proposição condicional, Todd afirma que se a ideia de nação renascesse, permitindo a todos os indivíduos o reconhecimento mútuo para além das diferenças de riqueza ou de instrução, todo o sentimento de impotência económica desapareceria. Esta é, aliás, uma conclusão de tom dialógico - tom que marca todo o livro - uma abertura de possibilidades reflexivas, que suscita uma séria discussão actual, neste princípio de século essencialmente marcado pelo pensamento utópico.
Enfim, segundo entendemos esta obra de Todd peca essencialmente no ponto de vista formal, porque do ponto de vista conceptual facilmente se compreende a sua importância para a reflexão económica e debate hodiernos, quer dizer, apenas apresenta um índice geral muito incompleto dos assuntos e dos subcapítulos, nem possui, por exemplo um glossário conceptual ou um índice remissivo, o que dificulta de sobremaneira a sua consulta. Encontramo-nos, não obstante, passados cinco anos, perante um rigoroso estudo de (nova) história em tom profético, daquelas profecias que apenas aos cientistas são permitidas.
Joaquim Carlos Araújo
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