Recensão por: Andreia Fernandes Silva
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Estudo de caso, resultado da dissertação de mestrado da autora apresentado no Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa , “Entre a Casa e a Caixa” é uma análise das vivências laborais das operadoras de caixa de um hipermercado situado na região metropolitana da capital.
O presente trabalho tem o mérito de não só fazer um enquadramento profissional dos agentes sociais estudados, mas também, de fazer uma análise aprofundada da vida familiar e do prolongamento da jornada trabalho para além dos limites laborais.
O estudo incidiu no acompanhamento, através de entrevista biográfica, de 131 mulheres e a consequente análise à luz de teorias do campo da sociologia do trabalho.
A obra obteve a menção honrosa do Prémio Mulher Investigação 2001 das Organizações Governamentais do Conselho Consultivo da Comissão para a Igualdade e Para os Direitos das Mulheres.
O livro revela o cruzamento entre a vida profissional e a vida familiar de um grupo de mulheres numa época em que o acréscimo do emprego feminino não coincidiu com a melhoria das suas condições de vida. Entre as principais características destaca-se a precariedade, a flexibilidade e a polivalência exigida às mulheres num tempo em que se continua a assistir no mundo do trabalho a discriminações não só de género, mas também à atribuição de baixas remunerações, à necessidade de duplas jornadas de trabalho, à degradação das condições laborais, bem como o prolongamento dos horários de trabalho em contexto doméstico.
O livro recorda que nos últimos 40 anos a profunda transformação da condição feminina na esfera laboral, a entrada massiva no mercado do trabalho, em especial nas actividades terciárias, não coincidiu com a assumpção de um papel de destaque da mulher na sociedade contemporânea. Para além das já referidas remunerações desiguais, a reduzida partilha de tarefas domésticas, a escassez de apoio por parte dos familiares masculinos, por exemplo, acabam por acentuar os fracos índices de participação social, cultural e política das mulheres.
Estrutura:
A autora inicia os dois primeiros, de um total de seis capítulos, com o enquadramento teórico de base e o itinerário metodológico seguido na investigação, recorrendo a teorias relacionadas com o trabalho feminino e a algumas teorias estruturais. Se no primeiro caso é chamada a atenção para a condição subalterna ao capitalismo, as segundas orientações teóricas versam sobre a condição inferior feminina no seio da sociedade tendo em conta as ideias feministas-marxistas e marxistas-feministas.
No terceiro capítulo a autora debruça-se sobre a origem popular dos actores sociais estudados bem como realiza a devida contextualização histórica do trabalho no feminino.
No quarto capítulo fala-se “das novas fábricas da distribuição” e do surgimento de um novo paradigma de flexibilidades que institui um novo tipo de proletariado, sendo ainda referida a repartição profissional desigual entre homens e mulheres.
Para finalizar nos quinto e sexto capítulos é realizada uma cartografia do trabalho precário, em especial é feita a referência ao caso português, seguindo-se o retrato das trabalhadoras da linha de caixa de uma grande superfície. É sobre esta parte que a presente recensão mais se debruça.
Para lá das evidências
A investigação realizada por Sofia Cruz não se limitou a observar e apontar o que é visível numa grande superfície.
Para além das tarefas de manuseamento de produtos, contagem e pagamento, acompanhada da função de fiscalização, as operadoras de caixa possuem a obrigatoriedade de desempenho de um sem número de outras actividades tais como: recepção, marcação, armazenamento, embalagem, reposição e exposição de produtos, atendimento e acompanhamento de clientes, manutenção das boas condições de limpeza e conservação.
Dito de outro modo, o trabalho de operadora de caixa pressupõe o exercício em paralelo de outras profissões: controlo dos produtos, auxiliar de limpeza, fiel de armazém, entre outras hipóteses. Para além da vertente tayolorista de funcionamento em termos de gestão humana dos recursos, estas mulheres são vigiadas desde a altura em que entram ao serviço até ao momento em que saem e são revistadas pela segurança, mas também acumulam funções polivalentes e muitas vezes horários de trabalho, o que no caso das mulheres casadas e com filhos representa uma sobrecarga com consequências no seio familiar.
As folgas e a rotação de horários com frequência penalizam estas mulheres e acentuam a insatisfação de muitas destas trabalhadoras.
Na verdade, nos nossos dias assiste-se a uma ilusão de flexibilidade.
Por um lado exige-se a polivalência, sempre implícita a este tipo de cargos, e, por outro lado, se a versatilidade de horários permite a opção do trabalho por turnos, a permanente mudança de horário leva a situações de acréscimo de trabalho ou à exigência de cumprimento de horários que não são compatíveis com as vivências familiares de algumas dessas mulheres, o que instaura situações de ansiedade e angústia, uma situação que se percebe melhor quando do universo estudado pela autora se verifica que 46% das mulheres são casadas.
Opção limitada
O estudo revela ainda que para estas mulheres o tipo de trabalho não é a primeira escolha de vida, nem aquela que mais ansiavam; surge como a mais viável para compatibilizar com a vida pessoal, e nos casos de escolaridade mais baixa, a que melhor se adequa à formação possuída.
Uma das vantagens do tipo de trabalho desempenhado é que este as liberta de certos constrangimentos familiares e lhes possibilita uma autonomia ou assumpção de um papel mais activo na gestão da vida familiar ao contribuir economicamente.
As casadas são as que evidenciam uma vida mais difícil, uma vez que o salário é um complemento da remuneração do marido e adoptam uma atitude de resignação e sacrifício.
A investigação possibilitou à socióloga a entrada no universo familiar de uma das funcionárias, onde teve a oportunidade de constatar que a jornada de trabalho se prolonga no contexto doméstico, não tendo, no caso analisado, o apoio masculino na partilha de tarefas.
De notar que se para um grupo de mulheres trabalhar fora de casa e a aquisição de alguma autonomia económica é deveras importante, para outras a actividade de caixa de supermercado é uma alternativa enquanto não aparece nada melhor. No primeiro caso estão as mulheres mais velhas e casadas, no segundo encontram-se as mais jovens, as que ainda estudam e as que tendo terminado os estudos encaram a opção como sendo passageira enquanto não aparece nada melhor.
Tal como na perspectiva tayolorista, o novo proletariado estudado pela autora caracteriza-se pelas baixas qualificações e consequentes baixas remunerações, pela execução de trabalhos rotineiros, por uma aparente flexibilidade e por condições precárias.
No caso estudado o trabalho no feminino para além de precário é acessório comparativamente ao masculino. No interior dos agregados familiares as mulheres, na maioria dos casos, trabalham como complemento ao salário masculino.
Fazendo um apanhado transversal do universo estudado tem-se a seguinte leitura:
- 71% das trabalhadoras trabalha a tempo parcial;
- 15% ocupa o part-time de 12 horas aos fins de semana, sendo estas maioritariamente jovens entre os 19 e os 24 anos;
- 29 % trabalham 40 horas semanais ( a mão-de-obra mais antiga);
- 53% tem entre o 10º ano e a frequência universitária, uma escolaridade acima da média da dos restantes trabalhadores da mesma empresa que desempenham outras funções. De notar que na maioria dos casos, as mulheres que frequentam o ensino universitário ocupam horários a tempo parcial, nomeadamente aos fins-de-semana;
- 39 por cento é jovem, com idades entre 19 e 24 anos;
- 41 por cento tem situam-se entre 25 e 30 anos e são solteiras;
- Metade das inquiridas possui entre o 4º ano e o 9º ano de escolaridade.
Nas considerações finais do trabalho Sofia Cruz acentua o facto de as trajectórias escolares, profissionais, familiares e sociais induzirem a condições de trabalho e de emprego precárias (148). se por um lado do universo estudado a autora concluiu que os baixos recursos e a baixa escolaridade estão no cerne desta escolha profissional, por outro lado assiste-se a alguma diversidade, nomeadamente no que diz respeito aos horários escolhidos pelas mulheres aqui em causa.
Apesar das baixas qualificações e condições de trabalho, importa ainda referir que as mulheres estudadas olham para o trabalho desempenhado como sendo um factor de mobilidade social ancorado numa noção de expectativa na maior parte dos casos baixa daquilo que o futuro lhes aguarda.
A autora:
Sofia Alexandra Cruz é licenciada em Sociologia e mestre em Ciências Sociais. Já foi investigadora do Observatório das Actividades Culturais e é docente na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
O presente trabalho mereceu uma menção honrosa pelo júri do Prémio Mulher Investigação 2001 – Carolina Michaelis de Vasconcelos.
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