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Recensão por: Aline Dias Paz
Nome do livro: Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa
Ensinar significa
transmitir conhecimento, certo? Segundo Paulo Freire, não. Educar é criar
possibilidades para a produção do conhecimento. Em sua obra derradeira,
Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa, o autor traz
uma contribuição inestimável ao processo de formação do docente. Com
sensibilidade e paixão, o educador mostra-nos como transformar, em sala de
aula, o atual sistema de ensino, que é tão excludente e injusto, e que por isso
mesmo, não satisfaz as necessidades dos alunos e –por que não – dos professores
também.
Paulo Freire foi um dos maiores e mais
significativos pedagogos do mundo. E, sem dúvida, o maior educador brasileiro.
Pernambucano da capital, nasceu em 1921. Iniciou um processo de alfabetização
com os oprimidos (como ele gostava de dizer), ensinado-os a ler e escrever.
Para isso, desenvolveu uma metodologia própria, que passou a ser disseminada em
todo o país. O “prêmio” que ganhou com essa iniciativa foi a detenção e o
exílio, acusado de subverter a ordem instituída. Em 1964, então, vai para o
Chile, onde escreveu sua obra mais famosa, Pedagogia do oprimido, e desenvolveu
trabalhos para a educação de adultos para a Unesco. Lecionou em Harvard, nos
Estados Unidos, em 1969 e por dez anos consecutivos, foi Consultor Especial do
Departamento de Educação do Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra. Em 1980, finalmente retorna do exílio. Foi Secretário da Educação na cidade de São
Paulo. Em sua gestão, lutou por melhoria salarial dos docentes, implementou os
movimentos de alfabetização e de reformas curriculares. Em sua carreira,
recebeu inúmeros prêmios: Prêmio Rei Balduíno para o Desenvolvimento (Bélgica,
1980); Prêmio Unesco da Educação para a Paz (1986) e Prêmio Andres Bello da
Organização dos Estados Americanos, como Educador do Continentes (1992), além
de do título de Doutor honoris causa em 27 universidades.
A bibliografia de Paulo
Freire é conhecida e adotada em todo o mundo. Pedagogia do oprimido; À sombra
desta mangueira; Cartas à Cristina; Pedagogia da esperança; A educação na
cidade; Professora sim, tia não. Cartas a quem ousa ensinar são apenas alguns
exemplos. A obra em questão, Pedagogia da autonomia, lançada alguns dias antes
da morte do autor em 1997, parece ser o amarração entre as outras obras. O próprio
Freire justifica a constante referência aos trabalhos anteriores: o tema
central é a formação do docente sob a ótica educativo-progressista. Muitos
aspectos abordados são recorrentes. Por isso, a referência.
O prefácio foi escrito
Edina Castro de Oliveira, mestre em Educação pelo PPCF/DEFS. Ela traduz, em
poucas palavras, o espírito da obra: “as idéias retomadas aqui resgatam de
forma atualizada, leve, criativa, provocativa, corajosa e esperançosa, questões
que no dia a dia do professor continuam a instigar o conflito e o debate entre
os educadores e educadoras. O cotidiano do professor na sala de aula e fora
dela, da educação fundamental à pós-graduação”. É esse o universo explorado
por Freire. Mas engana-se quem pensa que a obra é destinada apenas aos
docentes. Os ensinamentos propostos são de suma importância para todos que de
alguma forma estão inseridos no contexto educacional.
Este é um livro que deve
ser considerado como texto essencial de leitura e reflexão pelos responsáveis
da educação e formação a todos os níveis. A pedagogia proposta por Freire é
construída sobre 2 pilares: ética e respeito à dignidade e à autonomia do
educando. Durante todo o livro, tópico por tópico, o autor dimensiona a
importância da ética e do respeito na atividade docente.
Conversa entre amigos
Paulo Freire classifica sua forma de
escrever como oral. Na verdade, sua escrita lembra mesmo aquelas conversas com
amigos. Também pede a interação do leitor. Ele expõe sua teoria e explica-a por
meio de exemplos práticos (aliás, um dos saberes propostos é a aplicação do
discurso na dimensão cotidiana do aluno – uma verdadeira aliança entre teoria e
prática). Os exemplos não se restringem ao universo educacional: para ilustrar
sua explicação, o pedagogo aborda temas bastante heterogêneos – desde reforma
agrária à questão palestina. Experiências pessoais também são narradas. Esse
expediente usado por Freire – a ilustração como explicação – é bastante
interessante. É um saber a ser seguido por aqueles professores jurássicos que ainda
insistem em fazer os alunos “decorarem” a teoria crua.
O autor também revela
insatisfação com o modelo neoliberal vigente. Para Freire, os neoliberais são
tomados pela ideologia fatalista (“a realidade é assim mesmo, o que podemos
fazer?”) e pela acomodação. Não se conforma com a recusa destes à utopia. Daí
se justifica o tom raivoso que muitas vezes permeia o seu discurso. Uma raiva
legítima, de quem não consegue aceitar cinicamente, passivamente, as injustiças
as quais estão submetidos os “oprimidos” no mundo. Vontade de trabalhar esta,
que já lhe rendeu até exílio. O livro é uma negação a essa ideologia mesquinha,
imobilizante.
Outra marca forte no
discurso do educador é a “não-imparcialidade”, que aqui tem sentido da
expressão popular “ficar em cima do muro”. Paulo Freire diz que em tempo algum
pôde ser um observador imparcial, porque indignava-se com as injustiças (como
já foi dito acima) . Mas isso não significa que deixou a ética em segundo
plano. O professor deve assumir uma postura, mas não deve tendencioso frente
aos alunos para que eles adotem a mesma postura. O ponto de vista adotado por
Freire é o dos “condenados da Terra”.
Os educadores e educadoras
devem ser norteados por princípios éticos, já que exercem a prática formadora.
Mas essa deve ser a ética universal do ser humano. Essa ética condena o
cinismo, a exploração, a mentira, a ilusão e quem destrói os sonhos, as
utopias. A ética que não aceita preconceitos de quaisquer natureza. A ética que
liberta. Por isso, essa não pode estar desvinculada a atividade educacional de
forma alguma. E a melhor forma de lutar por ela, é vivê-la, como sabiamente o
autor observa. Muitas vezes, quem é ético, é taxado de ingênuo ou idealista.
“Não há docência sem discência”
Pedagogia da autonomia é
dividido em três grandes capítulos, que tratam de temáticas recorrentes,
interligadas. Cada capítulo é divido em tópicos. Cada tópico traz uma (ou mais) exigência para o ensino. O livro traz práticas
necessárias aos educadores progressistas, mas que também podem (e devem) ser
aplicadas aos conservadores. São saberes inerentes à prática educativa em si
mesma.
O primeiro capítulo, Não há
docência sem discência, como o próprio título revela, explora a íntima relação
professor e aluno. Talvez a frase mais enfatizada no livro todo seja “ensinar
não é transferir conhecimento”. O professor deve ter consciência de que ele é
agente na produção do saber e não mero reprodutor de conhecimento. Por isso, o
professor está em constante formação e passa a ser aluno também, pois sempre
aprende algo novo. Da mesma forma os discentes. É uma relação recíproca.
O docente deve estimular em
seus alunos a capacidade crítica, que Paulo Freire denominou de “curiosidade
epistemológica”, ou seja, o interesse por todos os campos da ciência. Para
Freire, essa curiosidade é de mister importância. O professor deve ser um
desafiador, incitar os alunos a pesquisarem, a pensar. O educador não deve ser
do tipo memorizador, que apenas reproduz brilhantemente o que leu, mas que não
sabe relacionar toda a sua “decoreba” com a realidade que o cerca. Essa
realidade circuncidante também deve ser respeitada, pois cada aluno traz para a
sala aspectos de sua prática comunitária. Muitos saberes, aliás são construídos
nessa prática.
O professor também não pode
valer-se de sua autoridade para cometer abusos. O bom senso nas decisões é
fundamental para não confundir autoridade com autoritarismo. Ele,
primeiramente, deve ser exemplo de conduta para seus alunos. Caso contrário,
sua credibilidade estará ameaçada.
Outros saberes necessário
são a aceitação do novo e a assunção da identidade cultural. A importância dos
gestos também é ressaltada. O gesto do docente tem grande peso sobre o aluno.
Eles ganham re-significação no imaginário do discente.
Seres incompletos
O segundo capítulo, Ensinar não é
transferir conhecimento, aborda, principalmente a questão do inacabamento do
ser humano. O homem não é completo; por isso, está sempre apto a incorporar
saberes novos. Por isso, devemos estar abertos à mudanças.
Novamente, Paulo Freire insiste: “a
formação do professor não pode separar-se de sua formação ética”. E instiga a
uma reflexão fundamental: todos os mestres deixam marcas em seus aprendizes.
Que marcas os mestres de hoje estão deixando?
É ético também lutar por
melhores condições de trabalho e salários. O trabalhador deve lutar por sua
dignidade. E no seu trabalho, deve transmitir alegria e esperança. A nossa
existência não está, felizmente, sob a égide do determinismo. Por isso, podemos
lutar e ter esperança. A realidade pode ser mudada.
O último capítulo
denomina-se “Ensinar é uma especificidade humana”. Nele, o pedagogo ressalta
que é imprescindível à atividade do aprendizado que o professor demonstre
segurança no conteúdo ministrado. E antes de exigir competência de seus alunos,
deve mostrar que o é. O docente deve ser comprometido com o trabalho. A
autonomia deve ser fundada na responsabilidade
Por fim, é ressaltado como
a educação pode tornar-se arma ideológica de dominação. Por isso Paulo Freire dedicou-se
tanto à alfabetização de adultos, para pelo menos dar-lhes o mínimo de
criticidade. E também por isso, foi acusado de subversão, já que ameaçou a
esfera do poder.
Educar exige despir-se de
preconceitos. Exige respeitar as diferenças e ser bom ouvinte. E, é claro,
exige amor, afetividade. Afinal, educar é lidar com gente. E gente é feita de
emoção.
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