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Recensão por: André Barata
Palavras de corpo inteiro
PALAVRAS DE CORPO INTEIRO
Por André Barata
Com este "Palavras de Ordem", Jean Baudrillard regressa ao seu próprio pensamento, como que em retrospectiva, para fazer dele não tanto um balanço ou uma reconstituição de um percurso que se estende por mais de trinta anos de reflexão, mas uma condensação extrema, a revelá-lo sobretudo tal como pensa, a surpreendê-lo no seu próprio movimento.
Não se trata, digamos assim, de um regresso às mediações intelectivas, mas de um regresso aos lugares nucleares que justificam o movimento de interrogação, lugares corporizados não por ideias mas por palavras, "palavras de ordem". Daí a condensação, o dar corpo e espessura, mas também o reproduzir de um pensamento vivo, porque as palavras enquanto permanecerem vivas não se deixam fixar pelo sentido. Na autonomia da sua referência, na sua faculdade de metaforizar, preservam o poder da interrogação. Por isso, na vida das suas palavras de ordem, Baudrillard faz prova da legitimidade, ou se se preferir da actualidade, do seu pensamento - "O objecto", "o obsceno", "a troca simbólica", "o crime perfeito", "a troca impossível", "o virtual", "o fim", etc., para enunciar os seus lugares mais comuns, dir-se-ia mesmo, irrevogáveis. Mais em particular e em primeiro lugar, "o objecto", palavra de ordem por excelência, que, de acordo com o teórico, não se esgota na mudez e inércia do uso, antes nos confronta com um querer dizer, objecto-signo, que não se dá nunca sem um plano ausente - pois "o signo é sempre o apagamento da própria coisa".
Com a problemática do objecto articula-se, quase como sua contraparte, a do "resto" (que é outra palavra de ordem) - "em qualquer parte existe um "resto", de que o sujeito se não pode apossar". E em articulação com o objecto e o resto, o uso e o signo, Baudrillard retoma outras das suas problemáticas recorrentes, a relativa ao estatuto do valor - "quanto mais o valor mercantil é apreensível, mais o valor do signo é fugidio e movente" - e a da troca simbólica, desde logo nas palavras, mesmo nestas palavras de ordem, mas nos rituais e nos mitos também, onde outras palavras se permutam: a reversibilidade, o sacrifício e o desperdício.
Outra palavra de ordem é "a transparência do mal", ou dito de outro modo, o entendimento do mal enquanto transparência, por se elidir o segredo, a própria possibilidade do profano e da troca simbólica. Por outras vias, Baudrillard indica-nos "o obsceno", isto é, a absoluta visibilidade das coisas (imediata e transparente) - por exemplo, na pornografia, à qual nenhuma dimensão de jogo sobrevive, muito em especial, o jogo da sedução, tal o imediatismo, tal a denegação da troca simbólica. Generalizando: "o que vale para os corpos vale para a mediatização de um acontecimento, para a sua informação. Quando as coisas se tornam demasiado reais, e dadas e realizadas de forma imediata, é nesse curto-circuito que se faz com que essas coisas se aproximem cada vez mais, e estamos assim no domínio da obscenidade". Há nisto, uma crítica exemplar dos media - "Claro. Tudo deve ser dito, tudo vai ser dito... Mas a verdade objectiva é obscena". Neste capítulo, foi exemplarmente obscena a cobertura mediática do caso amoroso do Presidente Clinton com uma estagiária. No limite, diz-nos Baudrillard, talvez só consigamos suportar o obsceno através de uma estratégia de ironia, "último avatar da sedução, num mundo em perdição e em obscenidade total".
Se o crime original foi a sedução, já "o crime perfeito" culmina na eliminação do mundo real e reside propriamente na perfeição, na objectividade total. Não se trata da morte do real, o que relevaria ainda uma dimensão simbólica, mas do extermínio desta e, portanto, do real. Como? Pela implementação de um "pensamento único" (que abarca, naturalmente, o pensamento único económico, mas vai muito além) que ao denegar o dual denega ambos os termos da dualidade: sem ilusão do real não há real, sem um lado de lá simbólico não há um lado de cá, sem um outro de si mesmo não há um em si mesmo, sem alteridade não há identidade. "O que está em causa no crime perfeito perpetrado sobre o mundo, sobre o tempo, sobre o corpo, é uma espécie de dissolução pela verificação objectiva das coisas, pela identificação". É claro que a verdade objectiva, para Baudrillard é também ela um mito, mas, ainda assim, é um mito final, de extermínio da sua própria condição de mito.
Finalizando, neste brevíssimo livro vai sendo reavivado, de articulação em articulação, o léxico que já reconhecíamos ser o de Baudrillard, mas de forma mais autonomizada, cada palavra de ordem sustendo-se, agora, como algo que está para lá da condição de conceito, algo que é fonte de conceptualização, mas sem se deixar fixar em conceito, ou pelo menos em conceito inteiramente especificado, determinável na transparência do seu sentido. Nisto, transparece qualquer coisa de auto-reflexivo, pois estas "Palavras de Ordem" de Baudrillard, ao fim e ao cabo, propõem um pensar que permaneça pensável como sedução, troca simbólica entre palavras e ideias, pensar que se joga, em tensão, na transição entre o ser humano e o ser desumano, face ao que pode ser hoje uma radical reconfiguração do sentido do real.
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