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Recensão por: Fátima Martins
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Mikhail BAKHTIN (V. N. Volochinov) - Marxismo e Filosofia da Linguagem, São Paulo, ed. Hucitec, 1999, 9ª edição. Tradução de Michel Lahud e Yara Trateschi Vieira,
a partir da tradução francesa Marxisme et Philosophie du Langage, Paris, ed. de Minuit, 1977. Prefácio de Roman Jakobson, apresentação de Marina Yaguello. Original russo:
Marksism i Filossófia Iaziká, Leninegrado, 1929-1930.
Porque ler hoje esta obra publicada em 1929, votada ao esquecimento durante várias décadas?
Muito se tem dito sobre a autoria desta desta obra: será realmente de Kakhtine ou de um dos seus assistentes, Volochinov e Medviédiev. Seriam eles efectivos testas de ferro
ou pelo contrário os verdadeiros autores de tão inovadoras teorias? Estas dúvidas não retiram a surpresa agradável da descoberta da obra. Devendo-se ela a Bakhtin
ou ao seu círculo, não há dúvida que, no início do século XX, a linguística estava mesmo a acontecer. Só é pena que teorias
tão inovadoras tivessem repousado inertes durante, pelo menos, meio século esperando pela Primavera dos anos setenta, qual desencantamento capaz de transformar o pó em sabedoria.
Apesar do título poder induzir um carácter politizado, este livro não é, em absoluto, sobre o marxismo. Procurando aplicar o método sociológico à linguística,
o autor não pode deixar de referir a sociedade em que está inserido e essa, sim, vivia sob a égide marxista. Assim, as relações entre linguagem e sociedade são
indissociáveis e por isso torna-se impossível colocar em compartimentos estanques uma e outra . Tal como Marina Yaguello aponta na sua análise introdutória à obra
se a língua é condicionada pela ideologia, a consciência, portanto o pensamento, a «actividade mental», que são condicionados pela linguagem são modelados
pela ideologia (Marina Yaguello, introdução à obra de Kakhtin, página 16).
Ora, esta teoria tão inovadora na época vai imediatamente colocar em questão teorias antes herdadas pelos filólogos do século XIX, mas sobretudo entrar em crítica
aberta àquele que foi considerado um dos mais brilhantes linguistas, criador de toda uma escola e de discípulos que quizá não tenham sabido dar a dimensão exacta das
palavras do grande mestre de seu nome Saussure.
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Numa época ainda herdeira do positivismo cuja principal preocupação era a de conferir às disciplinas determinados aspectos, de forma a poderem tornar-se ciências, objectos
de estudo delimitados e métodos de análise indiscutivelmente apoiados nos tradicionais métodos das ciências naturais, a maior parte das disciplinas ou áreas relacionadas
com os factores sociais ou humanos assentava quase sempre em descrições exaustivas que esqueciam as interrelações com os aspectos sociais. A necessidade de «cientifizar»
certas disciplinas era tanta que se acabava por compartimentá-las em cofres estanques, retirando-lhes a interdisciplinariedade sem a qual não podem deixar de viver.
Bakhtin começa por observar esta questão ao criticar o empirismo fonético superficial e a obsessão pelo estudo dos sons, do ponto de vista meramente físico e acústico,
sem a preocupação de os inserir numa realidade linguística e comunicacional. O objecto de estudo da linguística não pode pois ser o som enquanto fenómeno puramente
físico e acústico e tal como referiase isolarmos o som enquanto fenómeno puramente acústico, perderemos a linguagem como objecto específico (página
70).
É preciso que a palavra resulte não só de processos físicos, mas também fisiológicos e psicológicos e sobretudo inseri-los na interacção
social.
A realidade social partilhada pelos indivíduos torna-se assim condição essencial para que a língua se una à fala e se torne processo de comunicação capaz
de produzir actos de fala. Bakhtin conclui, pois, ser este o caminho para o verdadeiro objecto de estudo da linguística mas de forma a demonstrá-lo com maior exactidão propõe-se
a traçar o percurso histórico-científico elaborado até então e à medida que o vai desmontando nas suas dificuldades e incoerências vai também provando
a verdade do seu objecto e método de estudo.
Começa por dividir a história da filosofia da linguagem em duas correntes: a primeira denominada de subjectivismo idealista, que se iniciou fundamentalmente por William Humboldt, vê
a língua como um processo criativo, atribuindo-a basicamente a indivíduos isolados e não a factores sociais estabelecendo-se por isso analogias com a criação artística
em que é o factor psicológico individual o que mais se salienta na criação dos actos de fala. É, pois, uma concepção estética da linguagem em
que o gosto artístico individual impera e selecciona as escolhas feitas na língua. Para esta corrente a evolução linguística deve-se às rupturas estilísticas
baseadas nos gostos individuais. Poderíamos, assim, comparar esta visão de construção dos actos de linguagem com a poesia também ela construída pela violação
da norma e do estilo considerado normativo.
Quanto à segunda corrente a que denomina de objectivismo abstracto é, concretamente, a corrente saussuriana da concepção de língua como um sistema abstracto, constituído
por formas fonéticas, gramaticais e lexicais que vão garantir a unicidade e a normativização de uma dada língua. Este sistema composto por leis linguísticas
não pode depender da criação individual, nem depender de gostos estéticos, já que, as leis linguísticas são arbitrárias e, logo, se não
é o aspecto individual que impera é, sem dúvida, um colectivo social que obedece à norma. Bakhtin passa a criticar a visão saussuriana,já que esta cava um enorme
fosso entre a língua como sistema e a fala como actualização do sistema. A fala para os saussurianos não é mais do que «variações fortuitas»
das formas normativas e são essas variações que constroem a evolução da língua.
Bakhtin vai, pois, comparar as premissas saussurianas ao tipo de premissas racionalistas leibnizianas em que o valor da língua convencional e arbitrária e da lógica matemática
são inalienáveis, de tal forma que o locutor não é digno de ser levado em conta,já que não é o facto de exprimir a sua vida interior que torna o acto
objectivo e logicamente matemático mas sim o ponto de vista do receptor enquanto descodificador de símbolos lógicos, semióticos, isto é, signos linguísticos.
Sendo a fala um acto individual a língua não depende do sujeito falante, logo, a fala opõe-se à língua tal como o individual opõe-se ao social.
A partir desta distinção entre subjectivismo idealista e objectivismo abstracto Bakhtin propõe-se a criticar, dum modo mais aprofundado, as duas teorias. Assim, começando
pela do objectivismo abstracto.
Bakhtin interroga-se sobre como pode um sistema de normas imutáveis conformar-se a uma realidade estando esta em constante mudança. Bastaria observar e perceber que as normas imutáveis
da língua evoluiram com o passar dos tempos. Para os objectivistas o sistema diacrónico não passa, então, de um ponto de referência. Por outro lado, o sistema linguístico
enquanto sistema não pode ser visto de forma análoga aos sistemas normativos jurídico, estético, moral, etc, já que o sistema linguístico não deriva
da consciência do locutor, mas sim, da necessidade de comunicação, de fazer-se entender e ser entendido levando sempre em conta o contexto comunicativo. O signo linguístico
é assim uma forma em movimento determinada e orientada por um contexto. A palavra é apreendida no seu sentido particular através do seu uso. Basta olhar para o processo de aprendizagem
de uma língua estrangeira e verificar que as palavras descontextualizadas dificilmente são apreendidas ao passo que contextualizadas elas adquirem uma dimensão ideológica
e cultural.
Como podemos então isolar a enunciação? É forçar uma artificialidade, é como olhar para um corpo inerte com o qual não há possibilidade de interagir.
A filologia e o estudo das línguas mortas limitam-se a estudar esses cadáveres e não pode ser esse o método do linguista já que a reflexão linguística
foi originada a partir do propósito didáctico de ensinar uma língua estrangeira e, ensinar uma língua é ensinar a cultura e a ideologia da sua comunidade linguística,
logo, é ensinar a língua no seu uso.
É preciso entender que a formação das línguas ao derivar do contacto de línguas tenha feito cresçer um interesse primordial pelo estudo das línguas estrangeiras
e das suas origens. O que não foi tomado em conta é que os povos que cruzaram a história eram tembém eles portadores de cultura, de ideologias, e as palavras usadas eram
portadoras das cargas desses valores culturais e ideológicos que formaram civilizações.
Assim, as premissas sobre as quais assenta o objectivismo abstracto são facilmente criticáveis se tivermos em conta que :
1- A compreensão de uma língua orienta-se pelo contexto em que está inserida.
2- A enunciação monológica fechada é como uma abstracção . A palavra realiza-se dentro dum contexto histórico que levou à sua génese.
3- A língua em evolução não é um produto acabado e estagnado, daí que a sua formalização e sistematização só seja realmente
verificável quando cessa a criatividade, isto é, nas línguas mortas. A reflexão linguística de carácter formal e sistemático não pode pois dialogar
com uma abordagem viva da língua.
4- Ao estudar basicamente a enunciação monológica isolada a linguística não consegue aperceber-se da enunciação como um todo, das relações
que uma enunciação estabelece com outras enunciações.
5- O objectivismo abstracto acaba por estudar as línguas vivas como se fossem mortas e a língua nativa como se fosse estrangeira não reconhecendo a importância da contextualização
e da palavra em uso.
6- Apesar da palavra ser determinada pelo contexto ela não deixa de ser una. A palavra é polissémica e é a partir da interacção que a comunicação
se constrói. O objectivismo abstracto despreza essa interacção e a significação constrói-se descontextualizada recortando e restringindo a realidade.
7- O objectivismo abstracto despreza a diacronia. A língua passa a ser um produto acabado directamente imposto aos indivíduos. No entanto são os indivíduos que constroem
a língua e é através dela que despertam a consciência de si próprios.
8- A falta de ligações da diacronia à sincronia da língua provoca uma distância da realidade evolutiva da língua e das suas funções sociais.
Assim sendo, a crítica ao objectivismo abstracto demonstra que esta corrente estuda apenas os fenómenos linguísticos enquanto tal e, ao fazê-lo, rejeita e enunciação
e o acto de fala.
Bakhtin dispõe-se a mostrar a falsidade de tal premissa e passa à crítica do subjectivismo idealista já que é a antítese do objectivismo abstracto.
Na análise crítica do subjectivismo idealista verifica que também os subjectivistas partem da enunciação monológica que se apresenta como um acto individual,
mas que vem do interior do indivíduo e que, através da expressão, se exterioriza objectivamente para outrem através de códigos de signos exteriores. Pressupõe
portanto uma interacção entre um interior e um exterior mas o facto de ser o exterior que condiciona o interior põe em causa a teoria subjectivista.
Assim, o centro organizador e formador situa-se no exterior e é a expressão que organiza a actividade mental que a determina. Logo, a enunciação é o resultado da interacção
dos indivíduos na sociedade sendo um deles o locutor e o outro o interlocutor e tendo este último um papel preponderante na formação da enunciação, já
que o locutor vai construí-la dependendo para quem fala. A palavra tem duas faces: é determinada por quem fala e para quem se fala, é pois, o território comum do locutor
e do interlocutor.
Dependentes destes dois indivíduos a enunciação está também dependente da sua própria situação. Esta situação enunciativa é
condicionada, por um lado, pela actividade mental do indivíduo enquanto portador de necessidades e desejos e, por outro lado, pela sua inserção numa comunidade ou meio social atribuidora
de padrões culturais e sociais.
O contexto social e cultural assim estabelecido vai determinar a actividade mental que realiza a tomada de consciência e a elaboração ideológica.
Bakhtin distingue em primeiro lugar dois polos de actividade mental; a do eu fundada basicamente no indivíduo isolado e que é pouco produtiva pelo facto de estar desenraízada do
social; e a actividade mental do nós directamente proporcional ao grau de inserção do indivíduo na comunidade. Para melhor o ilustrar traça um paralelismo entre os
diversos tipos de vivências da sociedade soviética mostrando que as diversas vivências marcam modelos e formas de enunciação correspondentes.
Distingue ainda a actividade mental de tipo individualista a que denominou actividade mental para si e que é diferenciada da actividade mental do eu que está relacionada com o lado mais
animal do homem. Pelo contrário, a actividade mental individualista é estruturada na relação entre o indivíduo e a actividade mental do nós, isto é,
revela-se um produto total da interrelação social.
Assim, não é tanto a expressão que se adapta ao nosso mundo interior mas o mundo interior que se adapta às possibilidades da nossa expressão, aos seus caminhos
e orientações possíveis. (página 118).
À totalidade da actividade mental ligada à expressão designou por ideologia do quotidiano sendo esta a base de toda a enunciação e formação das ideologias
subjacentes a uma sociedade.
Desta forma, Bakhtin prova que o centro organizador de toda a enunciação, de toda a expressão não é interior mas exterior: está situado no meio social
que envolve o indivíduo. (página 118). Não é, pois, também correcta a corrente do subjectivismo idealista que põe em destaque o carácter individual
e subjectivo da enunciação. A interacção verbal é a chave da realidade fundamental da língua que se realiza na e pela enunciação.
O sentido da enunciação completa é o seu tema, isto é, a sua realização e é dado pelos fenómenos segmentais e supra-segmentais. A significação
deriva da interacção, ou seja, constitui os elementos da enunciação que são reiteráveis e idênticos cada vez que se repetem. É a sua significação
que nos leva ao tema e este à criação de diálogo e às relações translinguísticas.
Logo, não há dúvida que Bakhtin era já consciente da dimensão pragmática que muitos ainda não tinham percebido, destacando-se por uma concepção
realmente inovadora na época.
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Bakhtin retoma, nesta obra, o conceito de dialogismo e o valor duplo da palavra, ou seja, por um lado palavra no sentido de unidade lexical e, por outro, no sentido de encadeamento de ideias logo encarada
como unidade de enunciação.
Bakhtin vai considerar que a palavra não é uma coisa, não reenvia nunca a uma única consciência, a uma única voz. A vida da palavra é passar de
boca em boca, de contexto em contexto, de grupo social em grupo social, de uma geração a outra. Cada membro do grupo recebe a palavra através da voz do outro e cheia de significados
através da voz do outro. A palavra chega no seu contexto penetrada de sentidos dados pelos outros. O próprio pensamento encontra a palavra já habitada. (Julia Kristeve).
O dialogismo é a caracterísica do funcionamento discursivo em que se encontram presentes várias instâncias enunciadoras. É a presença destas várias instâncias
que constitui a dimensão polifónica do discurso. Bakhtin já o encontrara nos seus trabalhos sobre a obra de Dostoiewsky, onde várias vozes se fazem ouvir, concluindo que
todo o romance é o resultado de várias vozes enunciativas.
A partir do momento em que um eu institui um tu está a criar-se uma estrutura dialógica, ou seja, uma troca comunicativa mesmo que o enunciador se assuma como coenunciador basta que num
enunciado perpasse a voz dos outros.
Assim, a enunciação monológica vista por Saussure ou pelos subjectivistas é descontextualizada e logo estéril. Bakhtin compõe pois uma crítica extremamente
bem fundamentada mostrando, uma vez mais, que o homem é um animal social e a língua interage com a sociedade onde está inserido.
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