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Recensão por: João Carlos Correia
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"O século de Sarte", sem evitar a alusão
quase incontornável à intervenção
política de Jean-Paul Sartre, apresenta-se, em primeiro
lugar, como uma "Pesquisa Filosófica", no decurso
do qual o autor procede à análise das relações
entre a filosofia de Sartre e algumas das formas de pensamento
que o influenciaram decisivamente. Nessa medida, são de
destacar a análise das relações entre o
pensamento sartriano e as grandes correntes filosóficas
que se reflectem na sua obra, nomeadamente Bergson, Nietzsche,
Hegel e, especialmente, a Fenomenologia (designadamente as obras
de Husserl, Heidegger) e o marxismo. Simultaneamente, procede-se
a uma revisão de algumas das polémicas filosóficas
em que Sartre interveio como actor destacado, designadamente a
recepção francesa do pensamento de Heidegger, a
polémica com Merleau-Ponty e a controvérsia com
o pensamento estruturalista. Ao longo desta análise, aparecem
como temas centrais a Subjectividade e a Intersubjectividade,
o conceito de Sujeito e a polémica sobre o humanismo, tentando-se
ultrapassar o que o autor considera serem alguns equívocos
da recepção crítica de Sartre por parte da
vaga estruturalista.
Esta análise oferece-se como o pano de fundo sobre o qual
se procede à análise do "caso Sartre".
A tese de Bernard-Henry Lévy é de que Sarte mudou
de política (nomeadamente ao enveredar pelo conjunto de
intervenções conjunturais, muitas vezes desastradas,
em que se traduziu o seu compromisso) quando mudou de filosofia.
Ou seja, quando, a partir de A Crítica da Razão
Dialéctica, assume a totalidade da herança hegeliana
e se coloca, de modo inequívoco, do lado da história,
na qual reconhece um sentido até aí renegado.
Simultaneamente a esta dimensão filosófica, Bernard-Henry
Lévy procura "fazer justiça" a Sartre
enquanto escritor e romancista, indicando a sua clara preferência
pela "Náusea", "As Palavras" e "Caminhos
da Liberdade" como obras maiores. Tal como acontece no domínio
filosófico, procede-se a uma inserção da
obra de Sartre no contexto da literatura francesa. O autor refere-se,
em especial, à influência da literatura americana
através de John dos Passos e William Fawlkner, designadamente
o recurso a técnicas de escrita provenientes do cinema
e a fragmentação da narrativa através da
multiplicidade de pontos de vista. Este é, aliás,
um dos traços que leva Bernard-Henry Léy a concluir
que existe subjacente à literatura sartriana uma dimensão
filosófica: a multiplicidade de pontos de vista indicia
a despedida em relação à visão antropologisante
e cartesiana do sujeito. Os personagens de "Caminhos da Liberdade"
parecem ser, eles mesmos tipos moldados no pensamento que percorre
"L'être et le néant": as suas reflexões
parecem apontar para uma espécie de visão eminente
do não-ser que ameaça o ser e as suas acções
parecem lançadas num compromisso de liberdade que os leva
afastarem-se da facticidade irremediável das suas experiências
e do seu corpo.
Por último, Bernard-Henry Lévy enfrenta o próprio
percurso político e pessoal de Sartre, designadamente os
seus equívocos políticos, as suas idiossincrasias
pessoais e fraquezas no espaço da intervenção
política. Mais uma vez, a tese do primeiro Sartre surge,
aos olhos de Lévy, como o alibi que resgata Sartre dos
seus desvarios estalinistas e dos seus devaneios comprometidos.
O "Sartre assombrado por Nietzsche e Céline",
"o Sartre anarquista, libertário" opõe-se
ao Sartre "intelectual progressista", antes deste se
tornar "o intelectual totalitário da estátua
em que o quiseram transformar." A interpretação
de Lévy parece não suscitar dúvidas: que
a hipótese da boa comunidade não faça ontologicamente
sentido, isso decorre de toda a metafísica do primeiro
Sartre. Ele duvida do Homem: era o que A Náusea não
parava de dizer. Duvida da própria Pureza: este foi outro
tema de A Náusea e, depois, de Os Caminhos da Liberdade
e, está claro, se bem que mais tarde, de As Mãos
Sujas. Duvida da verdade: esse era uma das lições
de O Ser e o Nada em que era questão, como em Lacan, de
«uma verdade que não pode ser completamente enunciada.»
Duvida do Todo e, mais precisamente, da famosa conjunção,
assestada logo às primeiras linhas da Fenomenologia do
Espírito, entre o Todo e o Verdadeiro e, nessa medida,
não pode deixar de trazer à memória a proposição
adorniana: o Todo é Falso. Sartre duvida da boa comunidade,
do consenso, da possibilidade de fusão e de entendimento
entre os homens. Finalmente, despreza as visões que permitam
ao homem, a partir da realização divina, do Julgamento
Final, ou do triunfo da Utopia aceitar a tortura, o assassinato
e arbitrariedade em nome de um sentido da história e da
sua inscrição prévia na ordem das coisas.
«Abandonai o vosso ponto de vista e aceitai o dessa grande
utopia que eu vos proponho e em nome da qual vos peço que
aceiteis o arbitrário, os campos, o assassinato, o perigo
em sistema, a tortura, a devastação. Vereis então
que tudo faz parte de um plano de conjunto. Compreendereis então
que esta devastação, esta carnificina, talvez partam
de uma ordem superior" (Lévy, p. 373), diz Lévy
certo de que está a traduzir fielmente, a caricatura do
pensamento totalitário que se vislumbra no pensamento do
primeiro Sartre. Enfim, há o seu descomprometimento absoluto
- abstenção em 1936, quando da eleição
de León Blum, pacifismo individualista quando dos acordos
de Munique, expressões de um certo apolitismo, refractário
ao engagement, continuada publicação e representação
de obras na França ocupada, colaboração num
jornal pétainista, expressões enfim, de um certo
dandismo parcialmente coerente com a sua concepção
filosófica da contingência do sujeito - até
à sua adesão em 1941, à Resistência,
a fundação de um grupo do qual vários membros
são detidos e mortos, os encontros com Jean Cavaillés
quando Marlaux ainda achava impossível levar efeito a acção
directa em França, ou quando os comunistas ainda se despediam
das consequências do Pacto Germano-Soviético. (Lévy,
p. 385). Finalmente, há o Sartre, optimista e totalitário,
ao qual corresponde uma viragem filosófica. Ou seja, o
Sartre que, em 1944, depois da denúncia do colaboracionismo,
depois de se negar a encontrar um qualquer sentido oculto inscrito
na história, e da sua intransigência para com todas
as visões que buscam na Utopia a solução
final "recomeça a ver uma luz despontando a leste"
estando "em vias de de inventar com outros, o novo espírito
colaboracionista que se irá abater sobre a Europa."
(Lévy, 434.) O Sartre que se toma de razões contra
Camus, em nome da esquerda oficial. O Sartre que afirma : "todo
o anticomunista é um cão, persisto e persistirei
em dizê-lo." Que irá classificar de "povo
imaturo" os Húngaros revoltados em 56 e chamar o
o maior dos erros" ao relatório de Krutschev sobre
os crimes do estalinismo e ultrajar, levianamente, Soljenitsyne.
O Sartre que se aproxima da extrema esquerda para defender o
uso do terrorismo pela OLP em 1972, na aldeia olímpica.
E que, apesar da lenta distanciação em relação
à URSS, ainda chamará de "agentes da CIA"
aos novos filósofos. Apesar disso, é o mesmo Sartre
que se insurge contra a invasão da Checoslováquia,
que acusa Castro quando condena um dissidente cubano por homossexualidade,
que protesta contra a equiparação pela ONU do sionismo
ao racismo, que, apesar do apoio inquietante à acção
da OLP na aldeia olímpica sempre defenderá com idêntica
intransigência a manutenção do Estado de
Israel, em plena gerra do Kippur. Qual é a segunda filosofia
deste Sartre segundo? Para Bérnard-Hery Levi, é
a Filosofia hegeliana da Crítica da Razão Dialéctica,
quando a história parece assumir, em si, um sentido que
culmina na realização da razão absoluta que
nela incarna, e onde a comunidade que tanto desprezara retoma
uma importância nova no sujeito colectivo revolucionário,
para quem, enfim, a subjectividade é sistematicamente baptizada
de burguesa. Nessa medida, Lévy fala de uma espécie
de reacção ao retardador à recepção
extasiante de Hegel em França, através de Kojève.
Com efeito, L'être et le néant apesar de escrito
à maneira de Hegel, com recurso a abundante conceptualização
originada em A Fenomenologia do Espírito, ainda conteria
dentro de si, uma afirmação de individualidade que
resistia ao sistema e que se desmoronaria, no interior do pensamento
de Sartre, alguns anos depois.
Ao longo das mais de setecentas páginas do livro pressente-se
a necessidade sentida pelo autor de proceder a uma espécie
de reabilitação de uma figura que ele admite ter
sido injustiçada ("justiça para Sartre"
é o título de um dos capítulos), afirmado-se
que o desaparecimento do contexto político ao qual o nome
de Sartre está irremediavelmente ligado permite a escrita
de uma obra que, antes, seria considerada um "saudosismo
de mau gosto."
"O século de Sartre" constituiu uma das principais
surpresas editoriais do ano 2000 em França, ao configurar
uma espécie de justificação do desempenho
filosófico e político de Sartre durante os cerca
de 30 anos em que afirmou como uma espécie de estrela do
universo académico francês. A surpresa resultou em
grande parte do facto de a obra ser assinada por Bernard-Henry
Lévy, figura de proa da chamada "Nova Filosofia",
celebrizada pelo ambiente de condenação do desempenho
político dos "intelectuais de esquerda", de que
Sartre foi, talvez, o principal expoente. Apesar de ter conquistado
grande parte da sua celebridade no final dos anos 70 e princípios
dos anos 80 graças à assimilação entre
o pensamento revolucionário e o totalitarismo, granjeando
grande parte da sua notoriedade na solidariedade activa para com
os dissidentes do regime soviético e pela crítica
a Sartre e a todos os intelectuais que se comprometeram politicamente,
silenciando as violações dos direitos humanos levadas
a efeito por regimes que se identificaram com aplicação
dos «princípios marxistas», Bernard-Henry Lévy
parece fazer uma inversão intelectual no seu próprio
percurso, ao proceder a uma espécie de reabilitação
do percurso filosófico de Jean-Paul Sartre.
Trata-se, porém, de uma inversão de percurso suspeita,
em relação à qual os dados parecem viciados.
Em primeiro lugar, a obra é escrita sob o signo de um fascínio
intenso que, dificilmente, pode advir de hoje, por por mais que
se concorde que o desmoronamento dos muros ideológicos
em que Sartre comprometeu parte da sua independência (
e alguma da sua lucidez) permite uma re-leitura diferente da
totalidade da sua obra filosófica, literária e até
mesmo da sua intervenção política.
Em segundo lugar, apesar da abundância de argumentos retoricamente
expostos, corre-se o risco de algum simplismo nesta biografia
filosófica de um Sartre a quem a experiência concreta
e vivida da solidariedade sentida num campo de prisioneiros -
tal é a explicação de Lévy - faz passar
de um percurso envolto num certo diletantismo e distanciamento
irónico a um Sartre irremediavelmente comprometido com
« o sentido da história».
Por último, sobra a sensação de que a ideia
de justiça para Sartre corre o risco de algum partenalismo
que aqui e ali, assoma na obra, apesar dos protestos do autor
em sentido contrário. Justiça para este pobre velho,
extinto e inofensivo, que errou mas do qual ainda podemos recuperar
algumas pérolas literárias e filosóficas.
Sartre detestaria este tom de piedade . A grandeza ou pequenez
de Sartre já está construída e inclui os
seus excessos e os seus erros, sem os quais uma parte importantíssima
da sua obra e do seu pensamento podiam ser compreendidos. Se
existem alguns equívocos que urge desfazer - o mérito
da obra de Lévy é o de dar alguns passos para desfazer
alguns deles - tal trabalho não parece poder ser feito
no contexto de uma certo de contas feito em tom de elegia fúnebre
proferida com vinte anos de atraso.
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