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Recensão por: Luís Nogueira
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De há uns anos a esta parte que, para aqueles que se interessam seriamente pelas questões da literatura, da poesia e do pensamento, a leitura das recensões e reflexões de António Guerreiro, no semanário Expresso, se tornaram ponto de visita obrigatório. A obstinada precisão com que se debruça sobre cada obra, cada tema ou cada fenómeno fazem das suas inquietações e opiniões uma referência segura e informada sobre as problemáticas da escrita, com perspectivas justas e convicções genuinamente vincadas.
O universo de autores e temas privilegiado está longe da leveza e da cadência quase inconsciente com que se vão rendendo nos tops e nas montras obras e vedetas. Isso mesmo reflecte o livro agora editado, compilação de vários textos antes publicados avulsamente. Se quisermos inventariar genérica e tematicamente as áreas onde se move o pensamento de Guerreiro, é relativamente fácil enunciá-las: a literatura, a história, a poesia, a estética, a política. Mas, tentando ser correctos, podemos dizer que a categoria que realmente atravessa estes ensaios é o presente: a forma como o presente configura o papel da literatura, da cultura, da arte e o percurso que foi percorrido pelo Ocidente até atingir esta configuração instável e labiríntica.
No primeiro texto, intitulado A ocupação mais inocente, começa logo por fazer um diagnóstico inquietante ao dar conta da indiferença do nosso tempo pelas coisas da literatura, do desaparecimento da crítica e do momento em que chegou ao fim o velho mito do escritor. Não são questões de fácil solução. A sua enunciação é mesmo suficientemente ambígua para impossibilitar a elaboração de uma resposta. Sobretudo obrigam-nos a ir mais longe, e a colocar a pergunta com que não deixámos nunca de nos confrontar, mas que no tempo presente, o tempo de uma indigência crítica em relação à literatura e às exigências que lhe são feitas, se impõe com maior vigor: O que é escrever? Se concedermos como ajustada a resposta do autor que diz que escrever significa também instituir um tempo para os gestos que o tempo anula e desenhar um espaço para os sonhos que a época sufoca, então torna-se menos complicado perceber que talvez se esteja a assistir, num tempo dominado pela imagem e pela velocidade, a uma certa morte da escrita. Se não podemos aceitar na sua contundência e fatalismo a opinião do autor quando refere como são inócuos e fastidiosos os romances, os poemas, os escritores que erram perdidos num tempo que já não pode ser salvo, de onde está ausente toda a exigência de responsabilidade, apercebemo-nos, contudo, que é difícil resistir a este tom nostálgico e pessimista, que se vai tornando mais e mais verdade.
Ainda mais razão somos impelidos a reconhecer-lhe se atentarmos na figura que percorre todo o segundo ensaio: Paul Celan, o poeta judeu que com a sua obra e as circunstâncias em que a produziu (o horror do Holocausto) fez cessar - de um certo ponto de vista - a legitimidade da poesia. É mesmo sobre a ligação entre a escrita e a vida que se têm construído muitas das leituras da obra de Celan. Figura determinante nessa polémica sobre a impossibilidade da poesia depois de Auschwitz é Adorno. Ele foi um dos contribuintes para uma discussão que permaneceu (e não se esgotou) durante muito tempo. São as margens do dizível que estão em questão. Como dizer o extermínio? Existirá uma distância certa, capaz de assegurar a inevitável exigência de mostrar o horror e, ao mesmo tempo, preservar a dignidade das vítimas? De que categoria carece esse distanciamento, da supressão do lirismo, da compulsão hermética, do silêncio desesperado? Podem as palavras tornar-se paisagem-corpo, tornar-se realidade-outra, permanecendo nelas a realidade e a vida que as reivindicam?
Mas a poesia não cessou com Aushcwitz. Não podia. Sujeitou-se a metamorfoses, talvez tenha enfraquecido. O poema está, hoje, exposto a um perigo: o emudecimento. Não que as palavras se tenham calado. Pelo contrário, nunca como agora se sentiu um palrear tão intenso, abusivo. Apenas, e o que não é pouco, não sabemos se existe ainda a possibilidade de as resgatar ao silêncio, recuperá-las do abismo de um tempo que as prostituiu. Tal significa que o trabalho do poeta, esse exercício de resistência ao chilrear mediático, aos modelos e aos cânones, vive em risco de se tornar mais uma operação fantasmagórica, decorativa, indiferente. Por isso, se assim é, vale a pena perguntar que tempo é o nosso e pelo papel da linguagem nele, um mundo devastado, reduzido ao sem sentido que só pode dar origem a um balbuciar infinito.
Se tanto se fala do nosso tempo, da época, se inquirimos como nela viver e como vivemos nela, talvez devamos, mais do que nunca, e como princípio de reflexão, aceitar a intuição nietzschiana de que a modernidade é a época em que nada chega à maturidade. A época e as suas fantasmagorias é precisamente o título de um dos ensaios do livro. O que se encontra aqui como objecto de reflexão é, sobretudo, a concepção monadológica da temporalidade histórica de Walter Benjamin e a maneira como se pode dar (ou não) a paragem messiânica do acontecer. É inevitável fazer a ligação entre este texto e aquele que lhe segue, História e Apocalipse. Este ensaio vai de encontro a uma das problemáticas (retórica, política) que mais tem preenchido os discursos deste fim de século, o tempo da proliferação de fins: fim da modernidade, fim das ideologias, fim do político, fim da história e outros que tais. A partir dessa enunciação de fins, o que é possível constatar? Antes de mais a dissolução da tradição. E a evidência de que a época moderna procura legitimar-se a si própria. Mais uma vez, o pensamento de Benjamin, essencialmente na sua vertente messiânica, é um dos instrumentos de que Guerreiro se serve para fazer luz sobre a separação operada na modernidade entre história e apocalíptica, e sobre as implicações que a ideia de futuro traz para o espaço social, político e intelectual.
Sendo estes dois ensaios anteriores essencialmente marcados por uma reflexão sobre o tempo, o ensaio seguinte, A força da gravidade (Apresentação de Carlo Michelstaedter), é fundamentalmente um investigação sobre os homens no tempo. O autor começa por dizer que ele pertence à categoria dos homens póstumos, aqueles espíritos livres e solitários que nunca são contemporâneos da sua própria vida e só têm direito a viver depois da morte, como fantasmas alimentados por uma razão póstuma que se torna obrigatório escutar. Essa é uma das figuras modernas para onde o trágico se transferiu. Alvo essencial de análise aqui é a sua obra La persuasione e la rettorica, um documento extremo da recusa de todo o saber e sistema de pensamento cristalizados nos nomes abstractos que a filosofia foi conquistando e acumulando quase desde a sua origem, abrindo uma cisão entre o mundo do pensamento e o mundo das coisas. Em Michelstaedter vamos encontrar todos os grandes temas com circulação em Viena na viragem para o século XX: a desconfiança nas palavras, a consciência trágica da cisão entre o indivíduo e a cultura, a enorme responsabilidade ética do pensamento, da palavra e de toda a forma de criação. Seguindo o texto de Guerreiro, podemos dizer que o que interessava a este pensador, que se suicidou aos 23 anos com um tiro de revólver e utilizava a língua grega de forma intensiva (facto que denuncia um pathos da verdade e da intensidade do pensar que orientou toda a sua actividade intelectual, como refere Guerreiro), é algo como uma ética pura: Cada indivíduo é o primeiro e o último, e não encontra nada feito antes dele, nem lhe interessa confiar no que será feito depois dele. Deve assumir a responsabilidade da sua vida. Só essa assumpção poderá evitar a precipitação no tempo que dissipa a vida e nos subtrai à possessão do nosso presente. O objectivo é extremamente claro: a realização da existência soberana.
A encerrar o livro, um texto que remete para as questões da estética: O sublime ou o destino da arte. Acompanhando de forma quase genealógica a evolução do conceito, nas suas indecisões e desmultiplicações, desde o seu texto fundador, o Tratado do sublime, atribuído a Longino, filósofo e retórico grego do século III, até ao seu questionamento nas artes visuais ao longo de todo o século XX, o autor procura averiguar da importância do sublime para a interpretação da arte e do sentimento estético. A este respeito será de todo adequada a citação de um excerto do texto, suficientemente contextualizador do âmbito da reflexão: É, então, necessário perceber que a importância que a categoria do sublime adquiriu na estética e na filosofia contemporâneas é a resposta a uma experiência artística que interroga a arte no seu próprio acontecimento, no seu aqui e agora pré-reflexivo e não codificável, aquilo que excede toda a retórica do espelho, do reflexo, do mimético. Foi sob a égide do sublime que o Romantismo procedeu à exploração de um continente em grande parte por reconhecer. Um continente que não pode ser habitado sem riscos porque se situa no horizonte do informe, do terrível, do que provoca um comprazimento doloroso e destitui a soberania do sujeito, interrompendo a possibilidade de uma estável conciliação com o mundo, como é aquela que o belo proporciona. É este fundo negativo e este conflito entre as exigências da razão e as da sensibilidade que a arte moderna vai radicalizar.
O acento agudo do presente é, pois, um livro onde cabem, de uma maneira profunda, algumas das inquietações com que o pensamento se debate na actualidade. Que a investigação das implicações que o percorrem seja orientada por uma perspectiva singular, solidamente construída, que fazem de Guerreiro um sujeito do pensamento, com todo o distanciamento que traz o peso da erudição e que, por isso, afasta muitos ouvidos menos preparados, é uma garantia de que há ainda quem se disponha a pensar o mundo e o tempo com todo o escrúpulo necessário à percepção dos factos e das ideias. E que haja ainda editoras dispostas a arriscar uma aposta neste tipo de obras só pode ser motivo de louvor.
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