A História Hoje: linhas de investigação e problemas actuais
Judite A. Gonçalves de Freitas
RECENSÃO
CANNADINE, David
(coord.), 2006 – Que é a História Hoje?, Lisboa, Gradiva, 218 p.
Por altura do
quadragésimo aniversário da publicação da obra Que é a História? de
Edward Hallet Carr (1961), o Institute of Historical Reseach de Londres organizou sob o patrocínio de David Cannadine, director do citado instituto, um
simpósio em Novembro de 2001, com a finalidade de proceder a um balanço das “actuais
perspectivas sobre o passado” (p. 7).
O resultado do
referido encontro científico foi publicado recentemente entre nós sob a
coordenação de David Cannadine, com intervenções a cargo de nove historiadores
dos dois lados do Atlântico com preponderância para os investigadores de origem
anglófona... e isto parece-nos explicar quase tudo! Coube a estes estudiosos provenientes
de distintos domínios da história realçar aquelas que consideram ser as actuais
tendências da história nos meios académicos ocidentais e de nos fornecer
informação sobre a receptividade do discurso historiográfico pelo público em
geral.
A obra tem como
intuito apresentar de forma sintética as perspectivas actuais da história nos
seus múltiplos domínios científicos, do social ao intelectual, passando pelo
religioso e cultural, ou por categorias de análise como a história do género e
a imperial. Não sabemos exactamente quais terão sido os critérios que
presidiram a esta compartimentação das subespecialidades da história, mas
intuímos que elas espelham as tendências dominantes na historiografia britânica
e norte americana, que, de algum modo, se colocam sob os auspícios da ciência
pós-moderna e dos estudos pós-coloniais e de género, veja-se a interdisciplinaridade
defendida por alguns dos articulistas e a especificidade das respectivas
abordagens.
Na verdade, esta
subdivisão de «territórios» historiográficos e o alargamento das perspectivas
de abordagem representadas neste ensaio seria inconcebível ao tempo de Edward
H. Carr, quando a confiança era inequivocamente colocada nos estudos de
história social e económica associada aos excessos de «quantificação»; daí
resultando o esbatimento da história política e das instituições e de outras
subespecializações, e isto não obstante o alerta crítico lançado no final dos
anos 60, contra a preponderância do estruturalismo marxista, pelo historiador
do político Sir Geoffrey Rudolph Elton numa obra intitulada The Practice of
History (1967).
Apesar de tudo,
a ideia defendida por Edward H. Carr acerca do valor instrumental da história
como saber de utilidade pública constitui um importante legado, bem como a
noção de deslocalização da Europa e da sua história, para utilizar uma
expressão hodierna e muito na moda nos meios de informação social e em certas
áreas do saber académico (antropologia cultural et al.). Efectivamente,
Carr defendia a existência de uma “história menos britânica” (p. 20), ou
seja extra-europeia, e com ela a possibilidade de conhecer a visão do outro.
Quando passamos
à análise das práticas historiográficas verificámos que algumas das análises
produzidas sobre os domínios de aperfeiçoamento histórico colocam em causa
designações consagradas.
Paul Cartledge,
professor de história helénica em Cambridge e historiador do pensamento
político da Antiguidade Grega, problematiza a ideia da existência de uma
«história social» que, segundo expõe, remete mais para um modo de fazer
história do que para um âmbito específico da história. As principais críticas
do Autor incidem sobre o domínio da história social dos anos 60 e 70 que
produziu nefastos efeitos em toda a história. O Autor prefere o termo «história
de sociedades» ou o de «sociologia histórica» inflectindo para a dimensão
temporal e a análise diacrónica da história, ao invés daquela que geralmente é
defendida pelos praticantes da história social toutcourt. Por isso o
Autor remata “O pan-representacionismo (...) é tão preverso como a
historiografia pan-social-realista” (p. 51).
De outro lado,
Susan Pedersen, da Universidade de Columbia, estudiosa das relações familiares
e da função do género na época contemporânea, com estudos sobre política no
período situado entre as duas guerras mundiais, é chamada a pronunciar-se sobre
o panorama actual da história política. Segundo a Autora, “De todas as
formas de escrita histórica, a história política é certamente a que não carece
de justificação. Uma vez que lida com questões de poder e resistência,
autoridade e legitimidade, ordem e obediência, esta subdisciplina interessa não
apenas aos historiadores profissionais, mas a todos os que esperam viver os
seus dias com um pouco de paz e prosperidade” (p. 61). Mais à frente
considera que a história política está em crise, atribuindo as razões de tal
situação ao “assalto dos neo-marxistas” (p. 61), i.e. dos neo-estruturalistas,
e à vaga de pós-modernistas. A este propósito dá como exemplo o mais baixo
índice das conferências que versam sobre história política num dos mais
importantes encontros científicos transatlânticos - o North American
Conference on Bristish Studies (NACBS) -, que reúne profissionais de
estudos britânicos nos Estados Unidos e no Canadá. E isto não obstante o
‘aparente’ paradoxo, como aliás acentua previamente David Cannadine, de todas
as áreas seguirem “hoje o programa alternativo traçado pelos historiadores
do pensamento político há mais de trinta anos”(p.10).
Ao ler o texto
de Susan Pedersen não nos reconhecemos em algumas das observações que produz.
Do nosso ponto de vista, e trata-se da nossa área de estudo específica e por
esse facto justifica-se uma análise mais demorada, a Autora tende a salientar o
que se tem produzido na América do Norte e na Grã-Bretanha, negligenciando a
indispensável referência ao caminho percorrido pela história do político, de
meados dos anos 70 para cá, nas academias do continente europeu, com destaque
para a escola francesa e a alemã e as suas homólogas peninsulares.
Efectivamente,
e conforme refere, a história política tem tido no mundo de expressão inglesa,
um trajectória difícil, atormentada pela predominância da história da(s)
cultura(s) e da história intelectual, nos Estados Unidos, no Canadá e na
Grã-Bertanha. Daí que as informações críticas que S. Pedersen fornece a
respeito dos desenvolvimentos actuais da história política estejam, a priori,
limitadas geográfica e cronologicamente. Aliás é significativo que a Autora
consigne a expressão de «história política» e não de «história do político»
que, nos dias que correm, nos parece ser a mais consentânea com a natureza, o
âmbito e as múltiplas incidências temáticas dos actuais estudos produzidos.
Não se fala de história das culturas políticas (incluindo a história das representações, rituais, símbolos e imagens do poder); de história social e institucional dos poderes (a sociologia
dos governantes, o seu pensamento e práticas políticas, incluindo a história
das mentalidades políticas, para que tanto contribuíram as propostas inovadoras
de Bernard Guenée, François Autrand et al., pioneiros dessa renovação
historiográfica nos princípios dos anos 70); da ligação entre a História e a
Diplomática com grandes tradições na Europa Continental; e menos ainda da
ligação entre a História e o Direito, patente no desenvolvimento de estudos
jushistoriográficos. Estes são, sem dúvida, alguns dos actuais e primordiais
eixos da história do político. Bastará sugerir o percurso pela obra de nomes de
pujante produção historiográfica medieval e moderna na actualidade, para
percebermos a evidente fecundidade da história política, v.g. Claude Gauvard e
toda a equipa do Laboratoire de Médiévistique Occidentale de Paris I, Miguel Angel Ladero Quesada,
António Padoa-Schioppa, José Manuel Nieto Soria, Vicente Álvarez Palenzuela,
Albert Rigaudièrre, Iñaki Bazan, et al., e entre nós Martim de
Albuquerque e Ruy de Albuquerque, Armando Luís de Carvalho Homem, Maria Helena
da Cruz Coelho, Armindo de Sousa, João Gouveia Monteiro, Luís Miguel Duarte et
al. Esta «nova história do político» desenvolve-se sobre um leque alargado
de problemáticas e linhas de investigação, do poder local ao central, passando
pelos poderes intermédios, pelo estudo da actividade parlamentar (cortes), pelo
quadro de produção legislativo e as práticas institucionais do poder, pelo
sistema político e a construção do Estado Moderno, pelos serviços
administrativos e as elites do poder, por uma história das conflituosidades de
origem social e política ou por uma história social do crime, da violência e da
guerra et al., com recurso aos mais variados suportes metodológicos sob
o domínio da prosopografia.
Por outro lado, quando
a Autora refere que “na Grã-Bretanha a história política tem sido o alvo
preferencial dos historiadores (...) grande parte desse trabalho pertence ao
género da chamada história da liderança ” (p. 65), devemos entender que
Susan Pedersen se reporta a determinado âmbito e ângulo do político, e no que a
estes diz respeito parece haver coerência.
Algumas das mais
interessantes páginas deste ensaio são da responsabilidade de Olwen Hufton,
autor de uma história das mulheres na Europa Ocidental relativa ao período de 1500 a 1800. Hufton leva-nos numa viagem pela história religiosa dos anos 30 aos nossos dias
sustentada na análise retrospectiva do itinerário e da obra de três grandes
nomes da historiografia neste domínio: Gabriel Le Bras, sociólogo da religião (1891-1970), Jean Delumeau,
especialista em história do Cristianismo e Michel Vovelle, um dos expoentes
máximos da historiografia da Revolução Francesa e das atitudes colectivas
perante a morte no século XVIII. A escolha destes autores desvenda boa parte do
percurso traçado por esta disciplina desde inícios do século XX, que, salvo as
excepções apontadas, conheceu um longo período de ocaso (1930-1970), só
transponível com a abertura à histoire sérielle e à histoire des
mentalités.
Para
o Autor terá sido Gabriel Le Bras, o precursor do estudo das práticas
religiosas centrando-se nas questões de género e respeitando uma metodologia
própria da histoire sérielle (estatística). “Faz todo o sentido
iniciar este capítulo com Le Brás, já que a história religiosa não voltou a ser
a mesma depois dele” (p. 90). De igual modo, foi este o Autor que abriu
caminho a uma história da família, do espaço doméstico, ao salientar a
importância do estabelecimento de uma relação entre religião e comportamento
individual e social. Estes e outros temas foram particularmente impulsionados
por Lawrence Stone (1919–1999) e Philippe
Ariès ao debruçarem-se sobre a família, os sentimentos e as relações de poder,
bem assim como Jean-Louis Flandrin (1931-2001),
que se situa na mesma linha de ideias, inclinando-se para a história da
alimentação, da sexualidade e da família. Olwen Hufton realça a significativa
contribuição de Jean Delumeau no que respeita a história das emoções, tendo
procedido ao estudo do medo, da confissão e do purgatório no Renascimento
europeu. Por fim, Hufton destaca a magistral obra de Michel Vovelle sobre a
ascensão e queda do purgatório ao tempo do Barroco centrada no estudo dos
dispositivos preambulares de milhares de testamentos.
A apreciação dos
actuais desenvolvimentos da história cultural compete à professora Miri Rubin,
medievista da Universidade de Londres, cujos estudos versam sobre história
social da Europa do século XII aos inícios do século XVI, abordando as relações
entre os rituais públicos, o poder e a vida das comunidades. Através da
associação das abordagens da antropologia e da história actuais, salienta que o
conceito de «história cultural» é ambivalente, “tanto pode designar uma
história tradicional da produção artística e intelectual, bem como algo
diferente a que alguns chamam «nova história cultural»” (p. 111). A Autora
realça o facto de presentemente vivermos uma «viragem cultural» em todos os
domínios da história e de que esta viragem é, para todos os efeitos, mais
saliente nos estudiosos da Idade Média tardia e do início da Idade Moderna
(cfr. supra o que se disse a respeito da história do político). De outro
lado, está também patente a interpretação cultural da experiência histórica de
Marc Bloch e Lucien Febvre, pós I Guerra Mundial, com seguimento nos Annales
“avançando do évenement para a estrutura, da histoire tout courte para a histoire-problème.” (p.113), que teve
convincentes efeitos na obra de Fernand Braudel. Depois virão os historiadores
que se afastam da análise estrutural marxista, e se deixaram persuadir pelas
análises desconstrutivistas de Jacques Derrida e Michel Foucault. Um dos
domínios particularmente sensíveis a esta «viragem cultural» é a história do
género e a interpretação dos mais diversos significados e formas de representação
do poder ‘resolvidos’ pela diferença biológica. A história da cultura para Miri
Rubin é uma corrente renovada e adaptada da história das mentalidades, na
medida em que busca uma abordagem crítica do «sentido do real» (p. 122)
mediante a análise de documentos textuais de diferentes tipos (comunicação
verbal) e documentos não textuais (toda a comunicação não verbal, incluindo as imagens,
as representações figuradas, os sinais…), na linha de investigação de estudiosos
da École des Hautes Études en Sciences Sociales (ehess) que associa a História à Antropologia (v.g.
Jean-Claude Schmitt, Jacques Le Goff et al.).
A Alice
Kessler-Harris, membro do Instituto de Investigação sobre a Mulher e o Género
da Universidade de Columbia, coube a abordagem da história do género. A Autora reconhece
a enorme influência da obra de Edward Carr na sua forma de entender e defender
a história de um modo geral e a história do género em particular, quando diz se
Carr “fosse vivo hoje, (…) reconheceria certamente que os seus argumentos
abriram caminho a uma história do género, a uma perspectiva que invoca as
relações sociais entre os sexos como fonte de mudança e, sim, de poder.”
(p. 130). Para esta Autora Carr reconheceu a existência de perspectivas sociais
parcelares e nessa medida suscitou “interesse pelas vozes dos imigrantes,
dos marginais, das mulheres e dos negros” (p. 131). Nas últimas três
décadas as questões do género invadiram toda a história, a história política,
social, económica, intelectual, como que apoiadas na teoria pós-moderna que
confere ao conceito de «identidade» uma renovada dimensão e espessura. Alice
Kessler-Harris conclui que a história do género é uma área necessariamente
interdisciplinar, que “amplia a nossa visão do passado. Utilizando os
conceitos e os métodos dos pós-modernistas (mas não a sua rejeição do material)
(…) facilita a exploração da linguagem e da ideologia sobre as quais assenta o
comportamento.” (p. 144).
A história
intelectual é território explorado por Annabel Brett, leitora sénior do pensamento
medieval na Universidade de Cambridge. Brett começa por salientar a
ambivalência do conceito que, em bom entender, tende a confundir-se com a
«história cultural». Tradicionalmente as vertentes abordadas por esta
disciplina confinavam-se à história das ideias dos pensadores e à abordagem das
grandes questões intelectuais ao longo do tempo. Hoje, a história intelectual é
um domínio que explora a actividade do pensamento nas diferentes sociedades
humanas no tempo, procurando compreender o que de mais profundo dá sentido à
vida material das sociedades. Nesta medida, a Autora interpela se ao falarmos
de história intelectual não deveríamos falar de também de uma “história
sociocultural” (p. 152). Nos nossos dias, segundo adianta, a história das
ideias associa o estudo do pensamento humano às acções e actos humanos (p.
152). Nesta medida, a história do pensamento e a história da acção e produção
humanas interpenetram-se; o domínio intelectual não se sobrepõe ao domínio das
actuações do homem quer individual, quer socialmente. A Autora salienta que
esta alteração de perspectiva se deve, de algum modo, à influência dos
historiadores do pensamento político, dos inícios dos anos 60, ligados à designada
«Escola de Cambridge», que promoveram o desenvolvimento de uma área de
investigação que se apoiava na existência de uma relação entre a linguagem, o
pensamento, a acção e o tempo. O método de trabalho defendido pelos referidos
autores assentava na ideia de que “para compreendermos os textos pelos actos
discursivos específicos que representam, teremos que compreender o contexto
histórico no qual são proferidos.” (p. 155). Segundo refere, “a história
intelectual enquanto história da linguagem entende o uso da linguagem como um
elemento constitutivo do pensamento” (p. 156). Neste sentido, a história
intelectual é a narração dos «modos de falar» do passado.
O último
capítulo dedicado à história imperial é da responsabilidade de Linda Colley, cujo
estudo mais marcante está ligado ao desenvolvimento do sentimento de identidade
nacional britânico no período pós-Actos da União de 1707. Linda Colley é mulher
David Cannadine, coordenador responsável do presente volume. Conforme refere, “Vivemos
actualmente em tempos pós-coloniais, mas não ainda pós-imperiais.” (p.
175). Do seu ponto de vista, a história imperial foi tradicionalmente muito
compartimentada e qualificada como a história do império britânico ao longo do
tempo. Hoje, segundo diz, a história imperial é um domínio com enormes
possibilidades e interesse, que estuda o passado e o presente, que assenta na
transdisciplinaridade. A história imperial afirma-se como uma história
comparada dos impérios situados em diferentes latitudes e inscreve-se na longa
duração, para evitar “perspectivas tendenciosas e parciais” (p. 177).
Antes de
terminarmos não queremos deixar de realçar que ainda faltam estudos
cienciométricos e bibliométricos para poderemos afirmar com redobrada segurança
a que níveis se situam os vários domínios e áreas da história no começo do
século XXI e qual o peso relativo no conjunto das obras historiográficas.
Finalmente, o
epílogo, assinado por Felipe Fernández-Armesto, procede a um vivo, completo e
inteligente remate dos artigos reunidos nesta obra, estabelecendo os elos
necessários à compreensão do conjunto, confrontando-o com a visão de Edward H.
Carr Fá-lo com consciência de historiador, realçando as profundas mudanças
sociais, políticas e ideológicas que ocorreram ao longo dos últimos 40 anos e
que alteraram significativamente o mapa da História como disciplina científica
de interesse público, conferindo-lhe simultaneamente maior amplitude, maturidade
e especialização. Na verdade, trata-se de uma obra que cumpre o seu principal
objectivo ao reconduzir a debate a questão: Afinal, o que significa ler e estudar
História no dealbar do século XXI?
Judite A.
Gonçalves de Freitas