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Recensão por: Joaquim Carlos Araújo
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Uma Interpretação da Fenomenologia Material
Por Joaquim Carlos Araújo
Michel Henry, Phénoménologie Matérielle, França, PUF (Presses Universitaires
de France ), col. ÉPIMÉTHÉE (fundada por Jean Hyppolite e dirigida por Jean-Luc
Marion), 1990, 179 pp., 21x15 cm, 148 FF.
Trata-se de uma obra dividida em três estudos autónomos
(se bem que o último seja dividido noutros dois) tematicamente unificados
pelo conceito de fenomenologia. Fruto de conferências, seminários e artigos
de revista, foram realizados entre 1987 e 1988, excepto o segundo que aqui
foi editado pela primeira vez. Cada um a seu modo tenta explicitar uma crítica
construtiva ao pensamento do grande filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938)
- uma espécie de "morte do pai" extremamente sofrida pelo filho! O primeiro,
intilulado "Fenomenologia hilética e fenomenologia material", constitui a
espinha dorsal deste volume, ao distinguir estes dois conceitos tão fundamentais.
O segundo, "O método fenomenológico", propõe uma interessante abordagem reflexiva
com o intuito de delimitar o alcance da subjectividade absoluta. O terceiro
e último estudo, intitulado "Pathos-com" reagrupa dois textos: "Reflexões
sobre a quinta Meditação cartesiana de Husserl" e "Para uma
fenomenologia da comunidade", sob o signo da experiência do outro, o In-der-Welt-Sein
na sua relação com todo o Mit-Sein imaginável. Talvez seja nestes
últimos textos que o leitor consiga antever, um pouco mais claramente, as
próprias ideias do autor acerca da filosofia e da fenomenologia de um modo
particular.
Não exigiríamos um índice analítico mas, a organização do presente volume
peca, eventualmente, pela ausência de um resumo ou sumário analítico em cada
estudo, o que facilitaria a sua primeira abordagem, já que se trata de um
texto de difícil leitura, aliás como qualquer outro texto de fenomenologia.
Também a inexistência de uma conclusão poderia ser apontada. Não obstante,
estamos perante uma obra com textos algo dispersos e de motivação diferenciada
na sua origem, como o autor tenta explicar no Prefácio, intitulado "A questão
da fenomenologia".
Michel Henry considera, com toda a razão, a fenomenologia com o mesmo
estatuto filosófico que o Idealismo Alemão teve no século XIX, o Empirismo
no século XVIII, Tomás de Aquino na Escolástica, Platão e Aristóteles na
Antiguidade. Socorrendo-se das capacidades revolucionárias da fenomenologia,
pretende-se interrogar o modo como a fenomenalidade pura se fenomenaliza
originariamente. Para isso haverá que explicitar a tarefa da fenomenologia
material, a saber, a analítica da imediatez do pathos pela qual a substância
fenomenológica irreal/invisível da comunicação intencional, de si dá prova.
Na verdade, o ser (que é coextensivo e se funda no fenómeno) é um "ser vivo"
na medida em que, pela Ek-stase da sua fenomenalidade própria, está pateticamente
auto-afectado na/pela vida (da consciência intencional). E é esta a tese
da qual o autor parte.
A) No primeiro estudo, "Fenomenologia hilética e fenomenologia
material" (pp. 13-59), com alguma inspiração heideggeriana, chama-se à atenção
para a novidade que a fenomenologia material confere à fenomenologia clássica.
Partindo de uma reflexão sobre o tempo (pois é este o único modo de pesar
o como da manifestação da consciência ela-mesma), atinge-se a principal questão
da afectividade pura, na sua ipseidade de um pathos acósmico. As Ideias
Directoras para uma Fenomenologia, nomeadamente os §§ 851
, 862 e 973 , e as Lições para uma Fenomenologia
Interna do Tempo", de 1905, são os textos que se abordam neste ensaio.
Do § 97, retoma M. Henry a pista que conduz à conceptualização do tipo de
fundação existente entre os planos noético e noemático - ponto chave da sua
reflexão. Há que encontrar o "resíduo fenomenológico" fruto de uma "redução
radical de toda a transcendência que liberta a essência sub-jacente da sub-jectividade"
(p. 15) - da qual resulta para o autor a própria fenomenologia material -
chamando-se a atenção para a "estranha indecisão" de Husserl acerca do lugar
próprio para tematizar sistematicamente a clivagem entre a matéria e a forma.
Existe neste conjunto de ensaios um constante retorno à obra de Husserl,
citando-o sistematicamente de modo a deixar transparecer, nessas citações,
as "estranhas indecisões", "absurdos", "aporias", incompletudes, incertezas
e contrariedades no pensamento deste grande génio da filosofia. Mas o autor
admite, apesar de tudo, que alguns dos problemas por si levantados não o
seriam para Husserl, nomeadamente o "problema fundamental da unidade intra-consciencial
dos componentes hiléticos e intencionais do vivido", na sua relação com a
subjectividade absoluta (p. 18) - este primeiro ensaio vive essencialmente
de uma tremenda crítica (construtiva) ao filósofo. Por outro lado, M. Henry,
num estilo muito próximo do de Husserl, e com uma linguagem clara e objectiva
(tanto quanto o próprio texto husserliano o permite!), vai aproveitando o
modo como este torneará muitas das questões levantadas e supostamente sem
resolução.
O esforço brutal da fenomenologia husserliana, brutal porque "inconsciente",
teria sido a interpretação do "poder da revelação do impressional e do afectivo
como tal" (p.22) na sua relação com a intencionalidade (já que a afectividade
fundadora é a actividade intencional). Com efeito, toda a relação entre os
data das sensações (que a fenomenologia hilética tematiza) e a descrição
dos diversos tipos de noeses e de noemas que correspondem aos modos essenciais
da fenomenologia transcendental (intencional), é desenvolvida nesta obra
segundo uma conexão e coerência expositivas possíveis, se tomarmos em linha
de conta que o tratamento das realidades que a compõem tenta superar a dificuldade
de uma exposição fragmentada, embora, no seu todo, constituam o assunto de
trabalho deste professor da Universidade Paul-Valéry, em Montpellier.
As Ideen I teriam deixado por resolver a questão de como
os data das sensações são eles mesmos dados (p.27). E isso pela "incontestável
depreciação" dada ao conceito de $ulh e à própria
fenomenologia hilética. Para semelhante problemática seria considerada necessária
uma reflexão acerca das "profundezas da última consciência que constitui
o tempo" - nas palavras de Husserl (p.30).
As Lições de 1905, sobre a questão do tempo, "e sem dúvida
o mais belo texto da filosofia deste século" (p.31), pretenderão alcançar,
num gigantesco esforço, uma filosofia da arqui-constituição, correndo no
entanto o risco de perder o "Essencial" e a própria fenomenologia hilética.
Será a propósito do tempo que a fenomenologia husserliana irá conhecer, em
presença da Impressão, o seu mais espectacular e decisivo prejuízo.
De facto, o princípio que faz ver ou revela originalmente a intencionalidade
a ela mesma é a própria impressão. Daí a hilética ser tão necessária como
a própria fenomenologia, já que a primeira não poderá tão-só reduzir-se
a uma mera disciplina ôntica subordinada à fenomenologia transcendental -
"a consciência é impressional": eis a tese que demonstra bem que a consciência
se encontra impressionalmente afectada e que é ela mesma impressão, isto
é, a fenomenalidade pura como tal.
M. Henry quer denunciar a "ambiguidade intrínseca desta consciência
originária" (p.35) que, não obstante ser uma impressão, não é esta que a
realiza, pois, é a própria percepção que o faz, que dá o sendo, realmente
(p.36 e ss.). Assim nos surge (ironicamente...) a necessidade de uma certa
falibilidade ou nadificação ontológica da consciência originária, que as
Lições tentaram esconjurar. Eis o que nos leva a uma das aporias husserlianas,
já que a fenomenologia do tempo é, precisamente, uma fenomenologia da impressão.
E toda a ulterior fenomenologia não dirá alguma coisa mais: toda a arqui-presença,
enquanto arqui-revelação, se realiza enquanto impressão: é a "fonte originária
de toda a consciência e de todo o ser" (citando Husserl, p. 47). Segundo
o autor esta última questão parcial faz ver o "génio de Husserl", ao perceber
as dificuldades internas do seu pensamento.
Resta-nos a essência, quando a sensação originária foge. Resta-nos a
"auto-afecção da vida" (vida da consciência intencional portanto). A temática
da vida (p. 54 e ss.) será retomada no último estudo, nomeadamente na Parte
2: "Para uma fenomenologia da comunidade". O continuum da vida é o
pathos da vida, a sua "carne". Conclui Michel Henry: " 'Matéria', para
a fenomenologia material compreendida na sua oposição decisiva à hilética,
nada indica mais da fenomenalidade do que a sua essência. É deste modo que
a fenomenologia material é a fenomenologia no sentido radical [...]" (p.
58).
B) O segundo estudo desta obra, "O método fenomenológico", mantém
o tom crítico-construtivo anteriormente anunciado. Tomando como texto de
referência as Lições de 1905, proferidas por Husserl na Universidade
de Götinggen, a questão orientadora é a seguinte: até que ponto os conceitos
de método e de fenomenologia se devem associar?
Aproximando-se Husserl de Descartes pretende o autor recuperar o espírito
husserliano de rejeição de toda a tradição, projectando a fundação do conhecimento.
No entanto, fundar o conhecimento é um objectivo que se delimita num círculo
(vicioso), já que cada fundação é ela própria um conhecimento (duvidoso).
Mas Husserl ter-se-á libertado desta aporia recorrendo ao argumento cartesiano
da dúvida que não permite duvidar dela mesma. Partindo da "visão pura" ["vue
pure"] da cogitatio, que lhe permite à partida ser um dado absoluto,
M. Henry anuncia a absurdez dessa cogitatio real: "ela apenas é na
medida em que é submetido a um olhar, a um acto de ver puro" (p.64), o que
a torna dependente não dela própria mas de um outro que a dá puramente.
Esta absurdez determina por sua vez outra aporia que remete o puro acto
de ver para o mesmo estatuto que a própria cogitatio, identificando-os.
Doutro modo, "como fundar a existência da cogitatio a partir do seu
dado em pessoa numa visão pura, se esta última pressupõe esta existência
prévia da cogitatio?" (p.66).
Daqui resultariam uma série de erros dos quais M. Henry considera a
fenomenologia histórica uma vítima, principalmente pelo seu recurso a Descartes,
na "aberrante" interpretação de que o cogito é a primeira evidência
pura; o que conduz a outro erro histórico, ao erro fundamental de Husserl:
ao ter deslocado a cogitatio para o campo do "olhar do pensamento"
["regard de la pensée"] fê-la com isso desaparecer em vez de a transformar
num dado absoluto. Mais, Husserl confundirá ainda o ver e o
visto e a própria cogitatio, que nenhuma relação tem com os dois
- a primeira "omissão teórica" das Lições(p. 68).
A crítica completa-se pelo recurso ao § 7 de Sein und Zeit,
quando admite que a condição para que algo seja fenómeno-objecto-de- tratamento-fenomenológico
é, precisamente, "algo que não se mostra", permitindo perceber que o processo
de pensamento não se pode tomar pelo processo da realidade. O próprio Husserl
se terá interrogado sobre a possibilidade de uma reflexão sobre a redução,
sobre o fenómeno puro reduzido. Com efeito, a própria reflexão só
é possível pela retenção - o dado é o pré-dado: o que se "vê" encontra-se
"lá já" para se poder abrir a um eventual olhar (p.71).
São estas dificuldades que originam uma "perversão dos conceitos fundamentais
da fenomenologia", por exemplo, o conceito de imanência (da cogitatio)
- que Descartes pensa sob o nome de ideia; a donação de si ("selbstgegebenheit");
ou a ipseidade. Mas o filósofo "foi mais longe que todos os outros autores
contemporâneos" (p. 75), pois nunca duvidou que a cogitatio tinha
uma realidade própria, mesmo que algo indeterminada: a realidade do "reell"4
, o que remete o ser para uma subjectividade absoluta.
Mas no nosso ponto de vista, a mensagem subjectiva de Michel Henry é
a seguinte: a subjectividade absoluta de uma vida invisível da consciência
que faz o fenómeno ser um subjectum "retirado de" (ab-solutum)
o real... Já que, socorrendo-se de outros autores e ideias subjacentes, M.
Henry aplaude ostensivamente a viragem temática das Lições,
quando Husserl renuncia a uma "pretensão ontológica ultima de dar o ser"
(p.81). Resta saber, digamos assim, se Husserl tinha tal pretensão e se a
tinha até que ponto, com que consequências? Por outro lado, a questão das
essências (platónicas) está de facto subentendida no texto de M. Henry, talvez
por, e faça-se justiça, ela estar também subrepticiamente admitida nos próprios
textos husserlianos, coisa que Husserl talvez não tivesse conscientemente
admitido mas da qual tirou dividendos para a fase mais idealista do seu pensamento.
Por isso se compreende afirmações como a seguinte: "As coisas, antes da mutação
temática, são as cogitationes, depois, são as suas essências." (p.
88).
Mas como é que a essência é dada?! É dada como o olhar da intencionalidade
que se dirige sobre o objecto. Mas o erro mantém-se: como já vimos, não existe
alguma associação entre o acto de ver puro e a cogitatio mas, muito
pelo contrário, e respectivamente, uma dissociação radical entre a doação
e o dado. Tal casamento visão pura / cogitatio apenas possuiria uma
significação histórica.
E por encadeamento lógico surge agora a problemática da transcendência.
Aquilo que a define é o conteúdo do acto de ver puro. Daí a transposição
do sentido da própria redução: já não é uma redução à imanência mas à transcendência
- o que para M. Henry, revela, mais uma vez(!), o "instinto genial" de Husserl
para ultrapassar as dificuldades do seu pensamento (p.97).
Substitui-se então a cogitatio singular pela essência genérica. A
cogitatio não pode ser vista ela mesma tal qual é na sua imanência.
Há que relegar para segundo plano a realidade da cogitatio. A conclusão
é simples: o método fenomenológico substitui ("por instinto") a vida transcendental
pela sua essência, já que a primeira não é passível de um acto de ver puro;
falta agora cumprir a teoria das essências genéricas pelo desenvolvimento
da redução, que permite a assumpção de qualquer objecto (fictício, absurdo,
etc.) ser dado com evidência. Será então possível renovar o método fenomenológico
e a fenomenologia, agora que o dado em pessoa da cogitatio está desfeito
(p. 105). Em última instância haverá que socorrer-se, mais uma vez, de Heidegger,
com o seu famoso Seminário de Zäringhen: a já histórica colocação
entre parêntesis da própria consciência - pois Husserl não terá resolvido
o problema de como explicar o modo de aparecer do "referir-se a" da cogitatio.
Finalmente é retomado o § 7 de Sein und Zeit, o que permite
a ligação do método fenomenológico à fenomenalidade grega, ao "horizonte
do ser" - fazendo-se a economia da redução e rejeitando a imanência da consciência
- apresentando deste modo o problema fundamental da fenomenologia e da ontologia,
a vida. As várias alíneas deste famoso parágrafo são analisadas por M. Henry,
com o intuito de mostrar que o conceito de fenomenologia deve ser tomado
no seu "sentido puramente metodológico" enquanto fenomenologia descritiva
da mostração directa de qualquer processo de pensamento, como o científico
por exemplo (p.119). Por conseguinte, torna-se evidente a identidade da essência
do fenómeno e da sua descrição, retomando-se a questão crucial
do presente estudo: a identidade do objecto da fenomenologia e do seu método.
Finalmente a última aporia sob a qual se constrói o método: como é possível
uma filosofia da afectividade? - assunto discutido pela primeira vez nas
Lições, aquando da conexão entre a fenomenologia e a fenomenalidade
pura e original da vida, algo que para o autor a fenomenologia histórica
nunca desenvolveu (apesar de, dizemos nós, a última fase do pensamento husserliano
se ter dedicado à temática da Lebenswelt!). O que Michel Henry não
admite é que o pathos seja uma significação vazia na essência noética
da cogitatio (p. 126). Também não tolera que o correlato noemático
seja irreal porque posto fora da vida, não se deixando esta constituir, nesta
ordem de ideias, como vida real adentro de uma dimensão ontológica específica.
É então necessário conceptualizar a "visão pura" como uma modalidade da vida
segundo uma auto-afecção, já que toda a realidade possível (a natureza; o
"Outro"; Deus; etc.) recebe a sua efectividade de um ser situado na "Vida")
- porque é que o autor utiliza as maiúsculas?!... O "Dizer" é auto-revelação
patética da subjectividade absoluta. O "Verbo" que veio ao mundo é já uma
indirecta dimensão teosófica digamos assim (Henry recorre a autores como
Jacob Boehme...), não é o verbo grego mas a "vida escondida"! (p. 131).
Ambiguamente, este texto termina com uma referência a Marx a propósito
do "trabalho vivo" e da realidade económica, e um louvor ao método fenomenológico
como verdadeiro exegeta da "inteligência do mundo"...
C) O terceiro estudo desta obra, "Pathos-com", que agrupa dois
textos independentes, revela mais directamente ao leitor o pensamento de
Michel Henry relativamente a uma teoria da comunidade.
O primeiro texto nasce a partir de uma reflexão sobre a Quinta
Meditação Cartesiana e explora a questão do outro: como me é dado
o outro na minha experiência? O autor anuncia várias proposições e trata-as
sistematicamente cada uma por si. Resumindo, de igual modo, a análise husserliana
da experiência do outro - que "não consiste numa simples aplicação do esquema
de emparelhamento associativo obtido por empréstimo ao universo da percepção"
(p. 150) - avança com uma problemática fundamental (dividida por três etapas
interrogativas), a saber, como explicar que o objecto não é dado ele mesmo
uma vez que não é presentado mas re-presentado (por conseguinte, é sempre
um outro)? E se se diferenciar a "experiência específica do outro" da "experiência
perceptiva ordinária", como considerar uma experiência do outro onde a percepção
não têm nenhum papel?
Citando ou parafraseando pensamentos de Kandinsky, Kierkegaard, Cristo,
Leibniz, Kafka, Rilke, julga Michel Henry esclarecer a problemática husserliana
da Quinta Meditação: a possibilidade de que a percepção não
funda mas pressupõe uma raiz na vida transcendental donde o ego nasce, num
"Fundo" próprio. E alguns textos inéditos recolhidos nos três volumes da
Husserliana consagrados ao problema da intersubjectividade, são ligeiramente
referidos como pista de trabalho.
O segundo texto desta terceira e última parte de Phénoménologie Matérielle
de Michel Henry, surpreende um pouco pela positiva o leitor, com uma interessante
e original reflexão consagrada à comunidade, partindo de pressupostos fenomenológicos.
À guisa de sumário são apresentadas quatro questões de trabalho que podem
resumir-se, numa média temática por assim dizer, no seguinte: o que é a realidade
que "é" em comum numa comunidade e como se dá ela aos seus membros?
A essência da comunidade é a vida. Por sua vez, a vida define-se como
"auto-donação num sentido radical e rigoroso, neste sentido em que é ela
que dá e que é dada" (p.161). E nós, subjectividades absolutas, fazemos parte
desse "dom" (!). Por seu lado, a ipseidade constituir-se-á enquanto algo
de real, afectivamente real: a identidade do afectante e do afectado - não
uma essência ideal ou correlato de uma intenção eidética. Em suma, a subjectividade
é o principium individuationis. Na verdade, qualquer sistema político
que queira anular o indivíduo numa totalidade é uma mera abstracção. O indivíduo
é o modo próprio de "actualização fenomenológica" da vida.
O "grande mistério" é saber explicar o porquê da intencionalidade "perceber
o que se mostra no mundo como sendo um ego e lhe conferir o sentido de ser
tal" (p. 165). A filosofia ocidental, polemiza o autor, pouco disse sobre
os membros da comunidade, nomeadamente a partir do momento em que a metafísica
moderna se centrou na representação: "eu represento algo como eu, como o
meu eu ou como o teu. Porquê aquilo que é posto à frente é meu ou teu?" Nada
se sabe... segundo M. Henry - talvez a categoria de um tu absoluto
resolvesse o (suposto) problema!?...
Socorrendo-se eclecticamente de autores como Kant, Scheler, Nietzsche,
Freud, este professor pretende construir uma grelha fenomenológica base para
interpretação do fenómeno da comunidade. Com Scheler, por exemplo, descobre-se
uma "minúscula nuance" em relação a Husserl: foi Scheler que deu um sentido
mais radical à fenomenologia do "Da-sein" como "Mit-sein", porque lhe conferiu
o verdadeiro sentido patético. Foi Scheler que, contrariamente a Husserl,
de modo inaudito realizou uma percepção stricto sensu da realidade
psíquica: conceptualizou que ao se perceber o "corpo do outro" se percebe
igualmente o "seu psiquismo" (p.169). E ainda a título exemplificativo,
com a psicanálise do inconsciente freudiano (daquilo que se encontra fora
da experiência e como tal nada é), com exemplos muito ligeiramente tratados
(como a hipnose; as nevroses de transfert; as associações; etc.), pretende-se
transmitir a ideia de um complexo processo de formação da comunidade humana,
de que o "inconsciente" freudiano (assim como também o "animal" de Nietzsche)
se mostram apenas como etapas.
A essência da comunidade confere-se a partir da imediação. A sua essência
é a afectividade, o sofrer-com: é o "pathos-com" que cumpre a forma mais
excelente de toda a comunidade possível. Numa bela frase do autor: "como
um destino de pulsões e de afectos".
Notas
(1) Relembremos que o § 85 de Ideen I, de Husserl, intitulado
"$ulh (sensual),morfh
intencional.", apresenta a caracterização da hylé enquanto constante
dos objectos na consciência do mesmo modo que a intencionalidade os movimenta.
A hilética estará para a noética como a matéria para a forma. Num sentido
mais radical a hylé corresponde à Urkonstitution do eu (à consciência
do tempo portanto).
(2) O § 86 de Ideen I, de Husserl, intitulado "Os problemas
funcionais", trata da inseparabilidade dos aspectos noemáticos e funcionais
da própria fenomenologia: a função, algo de absolutamente original, é fundada
na essência pura das noeses.
(3) O § 97 da mesma obra de Husserl, intitulado "Que os momentos hiléticos
e noéticos são momentos reais do vivido, e os momentos noemáticos não-reais",
explora, de modo mais sistemático, toda a dialéctica existente entre a hylé
e o noema.
(4) Neste caso teríamos, inclusive, de reflectir, partindo de Husserl,
acerca do valor que, para a teoria do conhecimento, a própria objectualidade
possui. Pois, "do ponto de vista fenomenológico real ( reell)
[isto é, o conteúdo da consciência na sua imanência (o efectivamente vivido),
diferentemente do termo alemão « real », isto é, a transcendência
própria à coisa ou à realidade] a objectualidade ela mesma, nada é", embora
seja "transcendente ao acto" - "Für die reell phänomenologische Betrachtung
ist die Gegenständlichkeit selbst nichts; sie ist ja, allgemein zu reden,
dem Akte transzendent" (Logische Untersuchungen, V, § 20, p.
427). De facto, para a fenomenologia pouco importa a idealidade, a verdade,
a realidade (natural), a possibilidade ou a impossibilidade da objectualidade,
conquanto que se admita que é "sobre ela que o acto é dirigido" (id.
ibid.).
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