|
Recensão por: André Barata
O ser não foi de férias
O SER NÃO FOI DE FÉRIAS
Por André Barata
Decorrido um quarto de século sobre a publicação do "Tratado de Semiótica Geral", eis que chega a obra ansiada por todos os que desde então esperavam de Umberto Eco um regresso àquelas questões sobre a semiótica que ficaram sem resposta. Saber como nos relacionamos linguisticamente com as coisas e o que é a referência, ou saber como distinguimos um cão de um gato e reconhecemos alguma coisa na percepção, ou ainda, como podemos conhecer fenómenos desconhecidos, comunicá-los e torná-los reconhecíveis por outras pessoas - são estas algumas das questões em aberto, agora retomadas e não necessariamente encerradas, e que nos confrontam com um difícil e crucial "limiar inferior da semiótica".
No entanto, Umberto Eco não pretendeu com este livro dar-nos outro tratado de semiótica. "Kant e o Ornitorrinco" é assumidamente um livro escrito "sob a égide da indecisão", sem vocação sistemática, composto por ensaios que não chegam nunca a ligar-se como se espera que os capítulos de uma obra se liguem, antes valendo como "explorações vagabundas tomadas de diferentes pontos de vista" e que se reenviam umas às outras. Não é que não fosse desejável fixar certezas e arrumá-las num sistema bem arquitectado, mas, se calhar, quando se trata de passar da semiótica ao seu "limiar inferior" não haja outro começo senão este: "passar da arquitectura de jardins à jardinagem, e em vez de desenhar Versalhes (...) arrotear uns canteiros mal ligados por caminhos de terra batida". Talvez seja essa a condição de todos os limiares inferiores; de todo o modo, foi assim que Eco escreveu este livro.
Depois, mas ainda a propósito desta arte da jardinagem no ensaio, há as múltiplas "histórias" que vão sendo contadas entre reflexões teóricas duras. Alguns exemplos: a história dos mensageiros de Montezuma, rei dos Astecas, a do doutor Jekyll e dos irmãos Hyde, a do arcanjo Gabriel. Outras haverá, mas no essencial, para lá do estilo animado e do humor com que Eco escreve e se dá a ler, elas narram, por parábola, as dificuldades que se enfrentam ao pensar a referência, o iconismo, os primitivos semiósicos, os tipos cognitivos, os conteúdos nuclear e molar, etc. E ao lado destas histórias, por vezes mesmo como suas personagens, encontram-se muitos animais, alguns mais habituais como cães e gatos, outros nem tanto como rinocerontes e ornitorrincos, e ainda outros inexistentes como o sachacão. Mas deste bestiário é de facto o ornitorrinco que se destaca como um bicho semioticamente prodigioso. Donde lhe vem o prodígio? Para o saber, há que introduzir uma história e um problema.
Marco Polo, conta-nos Umberto Eco, ao deparar-se com rinocerontes em Java concluiu que, afinal, os unicórnios não eram presas fáceis para uma donzela, nem sequer deviam muito à beleza. O raciocínio do viajante veneziano é claro: o animal de Java é um quadrúpede, tem focinho e, em primeiríssimo lugar, tem um e um só corno. Eis pois o mítico unicórnio, apesar de "muito feio bicho de ver". Assim fica ilustrado que o mais frequente na actividade cognitiva é procurar reconhecer no desconhecido o que de uma forma ou de outra já conhecíamos. Mas, por vezes, o conhecimento de que se dispõe não serve muito para a compreensão dum fenómeno desconhecido, pelo contrário só parece dificultar a vida à boa alma que o procure entender. Pense-se, por exemplo, no estranho bicho que habita as costas da Tasmânia e que dá pelo nome de ornitorrinco. Até certo ponto, as ideias são claras: é um animal, disso nunca houve dúvidas - mexe-se, tem sangue, olhos, patas; enfim tudo aquilo que não tem uma planta, um fungo ou um calhau. Mas que tipo de animal? Põe ovos como as aves ou os répteis, mas não tem penas nem escamas a cobrir o corpo; pelo contrário, tem pêlos e dá leite como os mamíferos, embora não se vislumbrem a olho nu as tetas donde supostamente escorreria o leite da fêmea; tem ainda um manifesto bico como os comuns patos e passa boa parte da sua vida debaixo de água à semelhança de batráquios.
E agora, que diria Marco Polo se nas suas viagens descesse a mais baixas latitudes e encontrasse tão inédito bicho? A pergunta é de Umberto Eco, que com esta apresentação, nos coloca um problema seríssimo: como conhecer um fenómeno desconhecido quando não o conseguimos enquadrar numa classificação disponível ou, dito doutro modo, quando não dispomos de um conceito que o subsuma adequadamente?
Aqui entra em cena a outra personagem principal deste livro, o eminente filósofo alemão Imanuel Kant, autor das três "Críticas" (a da razão pura, a da razão prática e a do juízo). Eco justifica este face a face imaginário entre o ornitorrinco e Kant com humor: "Para fazer uma piada, Kant não sabia nada do ornitorrinco, e paciência, mas o ornitorrinco, para resolver a sua crise de identidade, teria de saber alguma coisa de Kant." Porquê? Por um lado, porque foi Kant o primeiro a pôr-se o problema, o que é de lembrar quando não são poucos os investigadores que pensam hoje o mesmo problema fazendo neokantismo sem o saber. Mas não só, também e sobretudo porque Kant nos dá respostas que importa discutir, a partir das suas noções de "esquema" e de "juízo reflexionante".
A doutrina do esquematismo responderia, no contexto da "Crítica da Razão Pura", à necessidade de encontrar um termo médio que fizesse a ponte entre um objecto intuído na sua particularidade, por exemplo o fenómeno de um ornitorrinco, e os conceitos do entendimento sem os quais não seria possível pensá-lo. A esse termo médio Kant designou "esquema". Contudo, nem todos os fenómenos dispõem de um esquema adequado. E esse é, para Umberto Eco, concerteza o caso do ornitorrinco, pois "como se podia juntar o bico e as patas palmadas com o pêlo e o rabo de castor, ou a ideia de castor com a de um animal ovíparo, como se podia ver uma ave onde aparecia um quadrúpede, e um quadrúpede onde aparecia uma ave?".
Kantianamente, responder-se-ia aos apuros do ornitorrinco do seguinte modo: se por existir ele deve poder ser pensado, então a única via possível consiste em procurar, por tentativas, subsumir o diverso "sob uma lei que ainda não foi dada", uma lei apenas enunciada como hipótese. E a esse procedimento, que apenas aparece com a última das três "Críticas", Kant denomina "juízo reflexionante", em oposição aos "juízos determinantes", i.e, àqueles que, dispondo à partida de um conceito adequado, se limitam a encaminhar o particular e o diverso para o lugar, já dado, onde podem ser pensados sob os preceitos da generalidade e da unidade.
As conclusões de U. Eco são duas. Primeiramente, os juízos reflexionantes complementam, ainda que tardiamente, o esquematismo transcendental; na verdade querendo obter um conceito empírico como o do ornitorrinco é necessário inferir hipoteticamente um esquema, igualmente empírico. Em segundo lugar, se os ditos juízos reflexionantes produzem esquemas empíricos, então é porque estes são históricos, culturais e dependem do "consenso da comunidade". Mas atenção, isto não significa que os consensos se substituam às coisas e possam não depender delas. É que o ser não foi de férias.
Agora o problema já é outro e não menos sério, trata-se do relativismo, questão, afirma Eco, "que se tornou central no mundo dito pós-moderno: se infinitas, ou pelo menos astronomicamente indefinidas, são as perspectivas sobre o ser, significa isto que uma vale a outra, que todas são igualmente boas(...)?" A não ser que haja alguém que pense que uma chaves de fendas é um bom instrumento para coçar orelhas, a resposta tem de ser negativa. Não está em causa que "o mundo como representamos seja um efeito de interpretação", acontece simplesmente que, para Eco, "há algo na conformação tanto do meu corpo como na da chaves de fendas que não me permite interpretar esta última a meu belo capricho". Em suma, há limites à nossa liberdade interpretativa que não são culturais nem textuais (como os que Eco trata em "Os Limites da Interpretação"), antes "se aninham mais fundo", no que existe. Numa palavra, o ser é um limite à interpretação. De que modo? Dizendo-nos "não" quando pretendemos que ele diga "sim" - "o ser opõe-nos "nãos" do mesmo modo que no-los opõe uma tartaruga a quem mandássemos voar". É claro que o ser não nos diz verdadeiramente "não"; ele limita-se a resistir à nossa vontade de um "sim" interpretativo e assim recordar que ainda não desapareceu.
Não se fique, porém, com a ideia que todos estes limites têm de significar apenas resistência, oposição, negação e frustação. É que sem eles, e se tudo se pudesse dizer do ser, "deixaria de ter sentido a aventura da sua interrogação contínua", nada nos desafiaria a compreensão, desde logo a de bichos tão prodigiosos como os ornitorrincos. E se Umberto Eco abre uma excepção para os poetas ("para eles as tartarugas são capazes de voar") é precisamente porque o seu discurso "coloca-nos perante a imoderação do nosso desejo" e porque, para terminar, "o que eles nos dizem é que é preciso ir ao encontro do ser com alegria, interrogá-lo, saborear as suas resistências, captar as suas aberturas, as alusões nunca demasiado explícitas."
|
|