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Recensão por: André Barata
Nitezsche e a Metafísica
NIETZSCHE E A METAFÍSICA
Por André Barata
Metafísica do Trágico é a obra que reúne um conjunto de estudos de Nuno Nabais sobre a filosofia de Nietzsche. O seu propósito inicial é o de habitar o silêncio, ele próprio trágico, que envolveu a filosofia nietzschiana da tragédia.
Trata-se de um silêncio que explode ruidosamente para, na aparente diversidade, aproximar o quase silêncio da recepção a que "O Nascimento da Tragédia" fora remetido em 1872 daquele longo silêncio a que o próprio Nietzsche se obrigou até "Ecce Homo" (1888), obra onde finalmente retomou o problema da tragédia, logo depois votado ao trágico silêncio da loucura, antecâmara do fim. Este silêncio assume múltiplas formas, entre as quais se conta a de um auto-silenciamento que, paradoxalmente, ainda se deixa ouvir. É justamente nesse silêncio audível que Nuno Nabais reencontra em Nietzsche a teoria do trágico "ao longo dos anos em que essa teoria existiu como silêncio acerca de si própria"(p.13). Representá-la é representar o seu silêncio; é actualizar tragicamente o significado do trágico que as palavras de Rozenzweig, em epígrafe, indicam - "O herói só tem uma linguagem que lhe corresponda adequadamente: o silêncio. Assim é desde o início. O trágico produziu para si a forma artística do drama exactamente para poder representar o silêncio."(p.9)
Sob este desígnio de audição do silêncio do trágico, os seis estudos deste livro desdobram-se em abordagens à relação de Nietzsche com a ética estóica, ao seu necessitarismo, à ideia do Eterno Retorno, às figura do indivíduo e da individualidade, e ao tema do niilismo e da sua superação. E em todos estes estudos, o que se dá à evidência - deverá, seguramente, ser esta a tese principal do autor, como o confirma o título do livro - é o carácter profundamente metafísico do trágico.
Atentemos ao primeiro dos ensaios aqui recolhidos, de título "Para uma Arqueologia do Lugar de Nietzsche na Estética da Pós-Modernidade", seguramente aquele que se faz espelho de silêncios audíveis, ressonância de nada, para uma contemporaneidade assaltada pelo fantasma do seu nascimento.
Se há um debate filosófico que tenha marcado os anos 80, debate que repercute ainda nos nossos dias, trata-se daquele que coloca face a face modernos e pós-modernos, os primeiros polarizados em torno de Habermas (e da sua obra "O Discurso Filosófico da Modernidade"), os segundo em torno de Lyotard ("A condição pós-moderna", "O inumano"). De um lado e de outro, a terceira Crítica de Kant serve de apoio. Enquanto Habermas descobre na estética kantiana a fundamentação da produção artística contemporânea (a qual se situaria na continuidade do projecto da modernidade, projecto de racionalidade que solidariza estética e política), Lyotard censura-lhe o esquecimento da analítica do sublime quando seria precisamente nesta, e não na do belo, que o essencial da contemporaneidade estética se revelaria.
Mas o debate sobre a pós-modernidade cliva-se com maior visibilidade entre nietzschianos e não-nietzschianos. Para Habermas, o autor de "O Nascimento da Tragédia" representaria, efectivamente, o ponto de viragem e de ruptura com o discurso da modernidade, o que leva Nuno Nabais a duas formulações que, em substância, indicam uma só questão. Por um lado, necessário seria saber se a filosofia de Nietzsche não herda nada da estética kantiana, contrariando o desenraizamento tão propício à defesa habermasiana de um contemporaneidade kantiana? Por outro, se à leitura pós-moderna e nietzchiana de Kant não se poderá acrescentar uma leitura kantiana de Nietzsche, estranhamente evitada pelos nietzschianos franceses (nomeadamente por Lyotard)? As resposta de Nuno Nabais são dadas realizando uma interpretação que se propõe descobrir em Nietzsche, e particularmente em "O Nascimento da Tragédia", a distinção entre Belo e Sublime. Sem ela não seria possível dar conta daquela outra distinção, reconhecidamente nietzschiana, entre o apolíneo e o dionisíaco. Só que, defende Nuno Nabais, a estética kantiana que chega a Nietzsche é mediada por Schiller ("Cartas sobre a Educação Estética"), e sobretudo por Schopenhauer ("O Mundo como Vontade e como Representação") e Wagner ("Beethoven"), pelo que se tenha de proceder a um trabalho arqueológico de escavação que leve ao reencontro do Belo kantiano no apolíneo nietzschiano e, especialmente, do sublime no dionisíaco.
Naturalmente, daqui resulta um reforço da posição pós-moderna dos nietzschianos franceses - "a fronteira entre modernidade e pós-modernidade desloca-se para o próprio interior da obra de Kant"(p.28) -, não obstante se trate de uma devolução, aparentemente mais moderna do que pós-moderna, a Kant de "aquilo que por muito tempo tinha sido atribuído a Nietzsche"(p.30).
Em grande medida, porém, este primeiro estudo dedica-se menos a Kant ou a Nietzsche do que a Schopenhauer, o grande mediador, cuja interpretação e transformação do sublime kantiano se abre inequivocamente à tragédia e à música, ou seja, ao espaço da metafísica do dionisíaco. De facto, a passagem do discurso transcendental da Crítica do Juízo a uma ontologia, e a substituição de uma moralidade do sublime kantiano pela defesa do sublime como "única experiência que liberta o sujeito totalmente da prisão da sensibilidade"(p.49) (que o liberta das representações que não passam nunca de aparência e que permite o acesso à Vontade) traduzem a própria experiência da "catástrofe trágica" - "No terror perante a existência em si mesma que a tragédia enquanto obra de arte produz naquele que a observa, o espectador sofre a conversão do sublime (…). Dá-se o sentimento de uma outra existência para além da representação"(p.56). Depois de Schopenhauer e de Richard Wagner (e sobre este último recairá eternamente a suspeita de desrespeito por aquilo de que não seria autor), virá Nietzsche comprometer na tragédia grega o sublime e a música, a música de Wagner precisamente, marcada pelo elemento dissonante, expressão musical do silêncio trágico. Virar de página, novo capítulo que tem por título "fim do sublime como experiência ética, início da estética como experiência do sublime"(p.71).
À semelhança deste primeiro estudo, os restantes obedecem a uma mesma orientação de reinscrição de Nietzsche na tradição metafísica, especialmente através da influência de Schopenhauer e do estoicismo. Mas, no caso de Schopenhauer, se a sua metafísica da vontade e do pessimismo transparece de formas nem sempre explíticas nas obras de Nietzsche, resulta, contudo, que os posicionamentos face àquela diverjem radicalmente consoante as fases do pensamento de Nietzsche. E esta discriminação de períodos que se sucedem sob uma lógica de ruptura é dominante nas estratégias de compreensão presentes neste livro. Com efeito, para Nuno Nabais, é a própria possibilidade de compreensão da filosofia de Nietzsche que depende (dir-se-ia mesmo que equivale, porque a dependência é recíproca) da fixação de uma cronologia de descontinuidades no percurso de Nietzsche. Por isso, na defesa das teses deste livro aparenta estar permanentemente em jogo uma tese implícita ou, melhor dizendo, uma tese culminante para a qual todas as outras convergem como argumentos, como se na sua verdade residisse o critério fundamental para a possibilidade de uma compreensão, se não integral pelo menos consistente, da metafísica do trágico de Nietzsche. Trata-se, pois, da afirmação de que existem fortes descontinuidades ao longo do pensamento de Nietzsche, descontinuidades que explicam a aparência assistemática do todo em função da demarcação de períodos, cada um deles, em si mesmo, dotado de sistematicidade.
Em virtude disto, importa naturalmente identificar os momentos de ruptura que o autor situa nessa solução descontínua, o que é possível através da leitura dos presentes estudos. Obtêm-se assim quatro períodos fundamentais (que nos escusamos de fazer anteceder pelo período dos escritos juvenis de Nietzsche): um primeiro, desde 1872 com "O Nascimento da Tragédia" (e incluindo as "Considerações Intempestivas", 1873-76), período reconhecidamente caracterizado pela filiação de Nietzsche na metafísica schopenhaueriana; um segundo, iniciado com "Humano, Demasiado Humano", de 1878 - período positivista e anti-metafísico, de permanente denegação e demarcação face a Schopenhauer (que inclui "Opiniões e Sentenças Misturadas", "O Viandante e a sua Sombra", "Aurora" e "A Gaia Ciência"); e um terceiro, a partir de Agosto de 1881, aquando a revelação do Eterno Retorno (e a que pertencem "A Gaia Ciência", de 1883, e "Assim falava Zaratustra"). Finalmente, a partir de 1885 - e esta é a ruptura em que Nuno Nabais mais insiste, fazendo dela a sua tese culminante -, inicia-se, a partir de 1885, um quarto período marcado pelo regresso da metafísica e pelo surgimento dos principais temas do "último" Nietzsche: a vontade de poder, o niilismo e a transmutação de todos os valores (com as quatro obras finais: "Genealogia da Moral",1887; "Crepúsculo dos Ídolos", "Ecce Homo" e "O Anticristo", 1888).
Fixada esta cronologia de descontinuidades, podemos, desde já, medir os seus efeitos (mas reconhecer também as razões que a fundamentam) na construção do segundo ensaio de Nuno Nabais, "Indivíduo e Individualidade em Nietzsche". Aí o objectivo consiste em compreender o modo como se modificam os significados dos conceitos de indivíduo e individualidade e, igualmente, a relação entre ambos ao longo da filosofia de Nietzsche.
Assim, se no primeiro período, o filósofo se limita a reflectir a partir dos pressupostos metafísicos de Schopenhauer, ainda que invertendo "as consequências éticas do paradoxo schopenhaueriano da individualidade inteligível a que não corresponde nenhuma individuação empírica" (p.86), é justamente em virtude dessa filiação metafísica que fracassa a sua tentativa de valorização do indivíduo empírico. Em contrapartida, se no segundo período, no qual o mundo da metafísica é preterido a favor de um mundo da representação, a consequência será precisamente inversa - a individuação, em função do mesmo paradoxo de Schopenhauer, valoriza-se à custa da irrealidade da individualidade -, no essencial, o vínculo à metafísica de Schopenhauer permanece. Por isso, escreve Nuno Nabais, "Nietzsche é ainda vítima da metafísica schopenhaueriana, precisamente pelo modo como a rejeita"(p.91).
Só com a ideia de Eterno Retorno, Nietzsche se liberta da influência do seu mestre, e da até então insuperável contradição entre individuação e individualidade. O lugar da individualidade é-nos agora dado pelo necessário regresso do mesmo na ordem temporal - "é aquilo que somos e fazemos a cada instante, porque a cada instante apenas repetimos exactamente a nossa existência dada de uma vez por todas desde a eternidade"(pp.93-94). E ao situar assim a individualidade na ordem temporal cíclica do eterno regresso, pela primeira vez Nietzsche consegue conciliá-la com o mundo da representação, superando os paradoxos schopenhauerianos que até então o perseguiam e, do mesmo passo, excluindo a pressuposição de um mundo da metafísica. Nesse sentido, para Nuno Nabais, o eterno retorno nietzschiano não surge como inauguração de uma nova metafísica, mas constitui, bem diversamente, um momento fundamental do processo de rejeição da metafísica: "Com a ideia de repetição infinita de todos os acontecimentos Nietzsche leva às suas últimas consequências a decisão "antimetafísica" de se manter no plano da representação, rejeitando as categorias de "razão", "princípio" ou "finalidade""(p.95).
Todavia, com o último período de Nietzsche e com o retorno à metafísica por mão da teoria da vontade de poder, e por se descobrir aí uma nova perspectiva sobre o mundo que excede as possibilidades de o representar, uma perspectiva a partir da qual o mundo se dá a ver pelo seu interior, os conceitos de indivíduo e sua individualidade ressentir-se-iam. E desde logo esse acesso pelo interior implicou como sua condição de possibilidade o próprio indivíduo, pois que é só analogicamente, no interior do indivíduo, que se acede à interioridade não-representativa do próprio mundo, esse "plano interior de todo o aparecer"(p.97), designado pelo conceito de vontade de poder. Assim, e não obstante a crítica nietzschiana deste período à crença no indivíduo, há que discriminar dois conceitos sob o mesmo nome: o "indivíduo-imaginário" a que corresponde o "erro subtil" no modo como os homens se interpretam a si mesmos e ao mundo falsamente, e o indivíduo como "sistema-de-vida" que deve libertar-se do plano da imaginação precisamente como condição da possibilidade daquele acesso interior ao plano da vontade de poder.
Contudo, e mesmo com esta discriminação, a teoria da vontade de poder não enuncia explicitamente o fundamento da individualidade; pelo contrário, este revela-se bem problemático. Efectivamente, se é certo que a crítica nietzschiana ao mecanicismo é feita pela redução das relações dinâmicas à condição de "sintomas" de um plano que as precede ontologicamente, importa, no entanto, nesse plano decidir se a individualidade é para ser entendida como substância (cuja definição implicaria sempre um ponto de vista interno) ou se é para ser entendida funcionalmente, isto é, como resultante de uma dinâmica relacional (apenas podendo assim ser definida de maneira extrínseca). Para dar solução a este problema, sem o qual ficaria sem resposta a pergunta pelo princípio da individualidade interior do indivíduo na teoria da vontade de poder, Nuno Nabais tematiza a diferença entre os conceitos de percepção e perspectiva, para salvaguardar por este último uma expressão intrínseca da individualidade. Segundo o autor, "é a articulação entre força e perspectiva que permite a Nietzsche afirmar todas as alterações quantitativas como tradução de alterações qualitativas e, desse modo, definir de um ponto de vista interno a individualidade de cada singularidade"(p.111) Mas o problema exige que na sua solução se defina qual a natureza originária da individualidade, se relacional ou não, se intrínseca ou não. E a resposta reside, segundo o autor, na "natureza absolutamente espontânea" do indivíduo, espontaneidade pela qual Nietzsche pode afirmar, finalmente, "(…)a anterioridade de direito da individuação face às relações diferenciais de poder" e "(…)a natureza intrínseca de cada indivíduo."(p.114)
É de concluir, pois, deste estudo a estreita relação entre a rejeição de um percurso filosófico de Nieztsche sem descontinuidades e a própria inteligibilidade das evidentes mutações que sofreram nesse percurso os conceitos de indivíduo e individualidade.
A tese central do terceiro estudo deste livro ("Necessidade e contingência nos primeiros escritos de Nietzsche") é enunciada logo nas primeiras linhas desse estudo - "A filosofia de Nietzsche representa a última metafísica da necessidade dos tempos modernos"(p.121) - tese surpreendente quando é o próprio autor a reconhecer que "(…)não existe na obra de Nietzsche qualquer tentativa de formulação de uma física ou de uma metafísica da necessidade." (p.123) Como se chega então a encontrar uma metafísica necessitarista em Nietzsche? Onde é que o modo da necessidade sobreleva a imponderabilidade criativa heroicizada por Nietzsche? Para esta segunda pergunta há uma resposta frequente na imensa bibliografia de estudos nietzschianos e que se prende com a cosmologia necessitarista de Assim falava Zaratustra, assente na ideia da repetição infinita. Mas, para Nuno Nabais, esta resposta compromete-se com um "efeito perverso", mais precisamente, com "(…)o apagamento da importância das formulações do necessitarismo anteriores a 1881"(p.123). E será justamente nestas, em concreto nos escritos juvenis (de 1962) Fatum e História e Liberdade da Vontade e Fatum e nos escritos de Basileia, que procura revelar a existência de uma reflexão sobre o modo da necessidade, reflexão praticamente ignorada até agora, e mediante a qual justifica a afirmação inicial de uma verdadeira metafísica da necessidade, a última da modernidade, na filosofia de Nietzsche. Neste contexto, é a própria perspectiva sobre a ideia de Eterno Retorno que muda significativamente. Com o seu aparecimento em 1881, longe de se ter inaugurado o necessitarismo na cosmologia nietzschiana, terá estado essencialmente em causa dar resposta a todo um programa necessitarista que a precedeu.
Em "Nietzsche e o Estoicismo", esta mesma metafísica da necessidade não podia deixar de ser retomada e confrontada com o necessitarismo estóico. Nesse quarto ensaio, são identificados os diversos registos de uma mesma afinidade entre Nietzsche e o estoicismo, uma vez mais ao longo dos diferentes períodos da sua obra, uma vez mais reflectindo as descontinuidades entre estes. Em grande medida, é exactamente em função do contexto de cada um destes períodos, tal como são demarcados pelo autor, que os registos da afinidade ao estoicismo são interpretados.
Num registo de aproximação, existem óbvias ressonâncias estóicas em tópicos nietzschianos como o eterno retorno, a vontade de poder e o Amor fati, mas há igualmente um registo conflitual (embora não tão óbvio como, por exemplo, nos célebres casos Wagner e Schopenhauer) que Nuno Nabais expõe segundo a perspectiva mais paradoxal: aquela em que, criticando os estóicos, Nietzsche mais não faria do que refutar-se a si mesmo. A propósito do aforismo 9 de "Para Além do Bem e do Mal", somos confrontados com a seguinte interrogação: "Não estará Nietzsche a atraiçoar o fundamental da sua ética da imanência no momento em que ridiculariza o ideal estóico de absorção integral da vontade humana no dinamismo cósmico de cada acontecimento?"(p.152) A esta pergunta Nuno Nabais responde que sim após uma minuciosa análise dos mecanismos de distorção empregues por Nietzsche nesse aforismo. Mas semelhante traição a si mesmo por parte de Nietzsche apenas exprime, para o autor, quanto o "tornar-se estóico" o ultrapassa. Nas suas palavras, "o que é mais surpreendente, é que entre a teoria da Vontade de Poder, que Nietzsche começa a elaborar precisamente neste ano de publicação de Para Além do Bem e do Mal, e a cosmologia estóica, há uma identidade de que Nietzsche nunca suspeitou"(p.173).
Assim, não é apenas como termo a opor à moral cristã que o estoicismo surge na filosofia de Nietzsche, não se trata sequer de uma "convergência fortuita entre o primeiro grande sistema filosófico da Antiguidade e um helenista em busca das causas da decadência da civilização grega"(p.161); pelo contrário, a identidade defendida por Nuno Nabais é não só uma identidade cosmológica, mas igualmente uma identidade ética e, sobretudo, a afirmação da mesma vinculação necessitarista entre física e ética. Por isso, na mais breve das sínteses possíveis, são dois e apenas dois os "imperativos centrais" do filósofo alemão - um imperativo cosmológico, o conhecimento da Necessidade da Natureza; e um imperativo ético, o amor fati.
O quinto estudo, intitulado "O papel da ideia de Eterno Retorno na génese do projecto de Transmutação de Valores", longe de repetir a quase unânime identificação entre aquela ideia e este projecto, procura estabelecer uma relação de dependência entre esses dois momentos que seja também uma explicação para a ausência manifesta da ideia de Eterno Retorno nas obras finais de Nietzsche, desde logo em Genealogia da Moral. Com efeito, pergunta-se o autor, "com que fundamento se pode afirmar constituir o Eterno Retorno a ideia capital do programa de transmutação de valores, quando esta ideia está ausente de todas as obras publicadas após 1886 e muito particularmente de "O Anticristo", obra onde esse programa verdadeiramente é formulado?" E a resposta hermenêutica do autor a esta pergunta prende-se com a identificação dos limites históricos do niilismo. É que se a ideia de Eterno Retorno é condição "biográfica" do projecto da Transmutação, no entanto, propriamente neste, apenas pôde surgir sob uma condição de excluída, pois o seu lugar pertence à história do niilismo, ainda que como o seu último estádio, ainda que com ela se alcance o limite do niilismo e apenas por ela se possa pensar a passagem ao projecto de transmutação de todos os valores. Por essa razão e por "O Anticristo" se situar do lado de lá do niilismo, o silenciamento do Eterno Retorno nesta obra é o sinal, pelo menos de acordo com esta interpretação, da radicalidade da metafísica autenticamente nietzschiana das obras finais.
Mas se esta interpretação pecasse por a sua construção ser exclusivamente negativa, quer dizer, por até aqui permanecer ausente o testemunho de uma evidência textual quanto ao lugar da ideia de Eterno Retorno, eis que no sexto e último estudo ("O Niilismo segundo Nietzsche"), Nuno Nabais exibe a prova positiva. Com efeito, sendo aí estudado o fragmento O Niilismo Europeu, é precisamente neste fragmento que as palavras de Nietzsche se tornam inequívocas: "O tipo menos saudável de homem na Europa (em todos os estratos) é o que sustenta este niilismo: ele sentirá a crença no eterno regresso como uma maldição, atingido pela qual já não recua perante nenhuma acção(…)"(§14). E adiante, a terminar este texto, referindo-se aos "mais fortes" de entre os homens, Nietzsche pergunta simplesmente "como pensaria um tal homem no eterno regresso?"(§16)
Daí a importância que O Niilismo Europeu assume na compreensão do sentido e das consequências da última grande descontinuidade no percurso filosófico de Nietzsche. Como no-lo confirma o autor, "percebemos hoje que este texto, onde a ideia de uma repetição infinita é pela primeira vez apresentada como consequência da própria lógica de desvalorização dos valores produzida pela moral cristã, marca cronologicamente o desaparecimento definitivo da ideia de eterno retorno das obras de Nietzsche."(p.243) Mas, neste ponto, haveria que perguntar por que razão a importância deste texto se fez acompanhar até agora por um tão grande desconhecimento. E a razão é simples, infelizmente até habitual no contexto dos estudos nietzschianos. Embora escrito em Junho de 1887, durante a estadia de Nietzsche em Lenzer Heide, só recentemente (na edição crítica de 1980, da responsabilidade de Giorgio Colli e Mazzino Montinari) foi recuperada a sua versão integral composta por dezasseis parágrafos.
Concluindo, neste livro de Nuno Nabais assiste-se a uma reconstituição do percurso filosófico de Nietzsche a partir dos seus momentos de fractura, momentos de silêncio que importava tornar audíveis enquanto momentos de silêncio, ou seja, não para os inscrever numa continuidade impossível, mas para os compreender na sua condição silenciosa. Em suma, para representar o silêncio ou, indo um pouco mais longe, o trágico enquanto trágico.
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