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Recensão por: André Barata
Falta título
A visão federal do futuro
Por André Barata
Se há uma especificidade no pensamento filosófico de Viriato Soromenho-Marques, talvez se possa encontrá-la no modo indissociável como a sua reflexão se orienta por um espírito de preocupação, empenhando-se e promovendo o empenhamento público em soluções raras vezes atendidas no plano sempre muito volátil da actividade política. Este elo faz com que se leia VSM sob o fundo de uma certa urgência, como que comunicando o seu espírito preocupado, mas uma urgência serena, conduzida por um pensamento seguro, sério e, mais importante, capaz de apontar direcções de resposta.
No presente livro, VSM regressa às duas problemáticas centrais na sua reflexão e preocupação filosóficas: a questão ambiental e a questão em torno da construção política da paz. A primeira, é expandida em toda a sua amplitude, ou seja, procurando saber como poderá a humanidade adequar-se às condições finitas do nosso planeta, o que faz muita diferença face a um ecologismo extremado, ora por um cientismo simplista ora por vias demasiado comprometidas, por vezes perigosamente, com ideários que estão longe de ter a causa ambiental como preocupação dominante. A segunda problemática, a da paz, é tomada no quadro da construção de uma figura contratual que regule a conflitualidade inerente à realidade humana.
A junção destas duas problemáticas justifica-se nos seguintes termos - "A paz e o ambiente serão as grandes causas do séc. XXI. E para ambas o federalismo oferece uma inspiração para as perguntas e um contributo para as soluções." Perguntar-se-á porquê o federalismo, pensando sobretudo numa sua representação muito crítica, a saber, como forma de um super-estado que degrada a soberania dos estados que o integram; pensando também, e mais em particular, nos Estados Unidos como um seu equivalente negativo.
Dar resposta a esta pergunta, devolvendo assim uma representação positiva - "com força na modelagem do futuro" - ao projecto federal é esse o desafio que VSM nos propõe neste ensaio. E fá-lo desenvolvendo um cuidado estudo sobre a revolução federal norte-americana, medindo as semelhanças com a revolução francesa, mesmo as influências sobre esta, mas sobretudo o seu carácter, a um tempo, universal e específico. É de notar por exemplo que, de acordo com o autor, "o êxito da revolução americana veio diminuir a sua força de atracção universal", em contraste com a revolução francesa que, "apesar do seu fracasso, ganhou um simbolismo político e trágico". De certa forma, o êxito da revolução americana singularizou a sua representação, perdendo-se a sua vocação universal original, aquela que George Washington, por exemplo, denota (e VSM nota) quando associa a causa da Independência com a da humanidade.
Não obstante, VSM não nos apresenta, em rigor, um ensaio de história sobre os acontecimentos que fizeram a revolução federal EUA; mas, mais precisamente, um ensaio em torno do extraordinário debate de ideias que acompanhou esse período revolucionário e culminou na Constituição de 1787. Um debate que excede o circunstancialismo político mais imediato, para se debruçar sobre tópicos que alcançam uma inédita dimensão ética e antropológica, como os direitos das gerações futuras, a virtude pública e "o precário equilíbrio da condição humana".
Consegue-se assim não perder de vista a comunicação entre o plano da contingência histórica e o plano da racionalidade para aí dar conta, sob uma muito nítida e assumida inspiração kantiana, da necessidade de uma construção política à escala de um globalização que está já aí - "como profetizava Kant em 1797, a humanidade vai ter de se entender mais tarde ou mais cedo, não porque uma onda de amor universal nos venha inundar os corações, mas porque a força das coisas nos colocou num mundo que é limitado pela esfericidade da sua forma e pela finitude dos seus recursos vitais".
Ora, o argumento central em defesa do projecto federal é duplo: reside, por um lado, na divisão e partilha da soberania, e, por outro, na instituição de uma dupla cidadania que faz do cidadão "o guardião da ordem federal no seu conjunto". A lógica federal de uma soberania partilhada, segundo diz VSM, "prefere as linhas horizontais às verticais, as soluções dialogadas às ordens vindas de uma cadeia de comando inquestionável". Porém, esta lógica, de cunho democrático, não é livre de tensões. Com efeito, conflitua, pelo menos potencialmente, com a natureza propriamente una, indivisa e vertical do conceito de soberania. Ou citando Carl Schmitt, como o faz o autor, há que notar que "Soberano é aquele que decide sobre o estado de excepção". A história dos EUA é neste capítulo exemplar, pois esse conflito latente a respeito do alcance da soberania federal culminou na confrontação de uma Guerra da Secessão, cuja "causa suficiente, observa VSM, não foi a escravatura, mas sim a diferença interpretativa em torno do federalismo presente na Constituição".
No plano dos princípios, o problema da soberania resolve-se pela dupla cidadania - são os cidadãos e não os Estados que assumem o papel de sujeitos do contrato político, o que consagra uma soberania federal sobre os próprios Estados. No contexto da Guerra da Secessão, Lincoln afirmaria mesmo que "a União é mais antiga do que qualquer um dos Estados". Isto significa que a dupla cidadania limita a partilha da soberania, pese embora ser essa a lógica que subjaz ao projecto federal. Nos termos do autor, "há um limite para o entendimento do federalismo como partilha de soberania: o respeito pela Constituição e pela integridade do projecto político de vida em comum por ela garantida."
Mas este plano dos princípios não pode ser dado por adquirido sem o devido percurso histórico de uma cidadania propriamente americana, como o de uma propriamente europeia e, num futuro desejável, planetária. O longo período de tempo que mediou a independência dos EUA e a sua Guerra Civil exemplifica bem a dificuldade em consagrar a limitação da soberania dos Estados de uma União. Apesar das muitas décadas de União, não foi possível evitar uma Guerra Civil, em que o direito deu lugar à violência. Por isso, mais que a instituição contratual de uma dupla cidadania, parece ser a sua consolidação histórica, morosa e não isenta de tensões, a pedra de toque de um progresso na criação de formas de soberania cada vez mais englobantes. Sinteticamente, dir-se-ia que a construção da paz, bem como a preservação de um futuro planetário em equilíbrio, são conquistadas na invenção de uma cidadania global, a complementar e prosseguir as múltiplas cidadanias locais herdadas. Essa é a fórmula do projecto federal, valiosa não como receita de efeito imediato mas como construção histórica.
Concluindo, é nestes termos que VSM encontra no projecto federal "a capacidade de enfrentar corajosamente os grandes desafios, sejam eles o da construção de uma ordem constitucional à escala quase continental dos EUA, em 1787, seja a capacidade de mobilizar recursos numa dimensão planetária, em 2002, para combater os imensos perigos das alterações climáticas, em paralelo com a luta prolongada contra as raízes estruturais do terrorismo e de todos os outros pontos de entropia do sistema internacional".
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