O sociólogo
polonês Zygmunt Bauman, oferece para o público acadêmico, mais uma produção
contemporânea repleta de reflexões sobre a convivência humana. Em, o "Medo
líquido" publicado pela editora Zahar, com tradução de Carlos Alberto
Medeiros, Bauman discorre sobre a vida no mundo líquido-moderno. Mas em que
consiste este “medo líquido”? Qual seu alcance em nossa sociedade? É possível
estabelecer uma relação clara e nítida a partir de um elemento tão particular,
tão subjetivo? Qual o alcance social desta análise da sociedade?
Para
compreendermos o “medo líquido”, é importante relembrarmos que em pleno século
XVI, no tempo e lugar que nossa era [a modernidade] estava para nascer, Bauman,
nos vislumbra uma definição da modernidade: “medo sempre e em toda a parte”. A
modernidade seria o grande salto à frente: para longe desse medo, na direção de
um mundo livre do destino cego e impenetrável, ou seja, a estufa dos temores.
Esta crença que se revelou frágil, e acabou se diluindo ao longo do tempo, do
mesmo modo que a crença de segurança prometida pelo iluminismo, se revelou
insuficiente. Em ambos os casos, venceu a escuridão e o temor.
Este mundo
líquido-moderno passa a representar, o mundo em que o ser humano vive em meio a
uma ansiedade constante; onde as pessoas têm medo de perder o seu emprego,
possuem medo da violência urbana, do terrorismo, de ficar sem o amor, da
exclusão, entre tantos outros medos.
Bauman,
dessa forma aponta para a existência de um “sentimento de medo”, para o “medo
secundário”, ou também o denominado “medo derivado”. Freud, ressalvadas as
diferenças de enfoque e análise deste autor em relação a Bauman, já em “O mal
estar na civilização” (2000) ao demonstrar o mecanismo da estrutura psíquica,
também se refere ao medo. Desse modo, o sentimento de medo, é o primeiro
sentimento conhecido de toda criatura viva, nós seres humanos compartilhamos
com os animais essa experiência, que oscila entre as alternativas da fuga e da
agressão. Já, o medo secundário, uma espécie de medo de segundo grau, é um medo
social e culturalmente reciclado. Ele pode ser visto como um rastro de uma
experiência passada de enfrentamento da ameaça direta, ou seja, um resquício
que sobrevive ao encontro e se torna um fator importante na modelagem da
conduta humana mesmo que não haja mais uma ameaça direta à vida ou à
integridade.
E, por fim,
nesta enunciação baumaniana, o “medo derivado” como uma estrutura mental
estável que pode ser mais bem descrita como o sentimento de ser suscetível ao
perigo que gera sensação de insegurança e vulnerabilidade. Uma sensação de
insegurança, pois o mundo está cheio de perigos que podem se abater sobre nós a
qualquer momento com algum ou nenhum aviso; e, a sensação de vulnerabilidade
pois, no caso de o perigo se concretizar, haverá pouca ou nenhuma chance de
fugir ou de se defender com sucesso; o pressuposto da vulnerabilidade aos
perigos depende mais da falta de confiança nas defesas disponíveis do que do
volume ou da natureza das ameaças reais.
A
ubiqüidade dos medos é o que mais amedronta. O resultado desta ubiqüidade
repercute no aumento de uma busca de sensação de segurança, ou pelo menos de
afastabilidade do perigo. O resultado disto é a busca de um “local seguro” para
circular, como os shopping centers, a segurança dos carros blindados, ou mesmo
o convívio em condomínios fechados.
Para
Bauman, esta é uma das marcas do nosso tempo, o autor faz um inventário dos
nossos medos presentes, apresentando um diagnóstico claro a cerca das origens
comuns das ansiedades contemporâneas, ao mesmo tempo em que analisa os
obstáculos que impedem o pleno entendimento da sociedade.
O que há, a
todo o momento, é uma análise dos mecanismos que possam deter a influência do
medo sobre a vida. Segundo Bauman, as certezas da modernidade sólida se foram,
e, com isso, a utopia do controle sobre os mundos social, econômico e natural
desmoronaram. Apontamos, a exemplo disto, as análises sobre o fenômeno do Big
Brother o que ele denomina de “contos morais” de nossa época.
O autor
mostra como esse tipo de programa e outros reality shows, de uma maneira geral,
corroboram para a banalização do medo e da morte, fazendo deles um simulacro ou
um objeto de estetização. Neste sentido, torna-se evidente que as culturas
podem ser entendidas como dispositivos que engendram o medo e a morte, assim
como os tornam mais contempláveis. O que não há é alguém quem não tema o medo,
mas não há quem não queira se defrontar com ele, sobretudo quando mediados por
uma tela. O Medo também se associa à idéia de mal. Auschwitz, Gulag,
Hiroshima gerariam metaterrores; seriam incubadores de medo gestados e
difundidos por nossa percepção. Por outro lado, pensar neles implica no desejo
de que se desvaneçam e que fiquem seguros em sua invisibilidade. O temor também
se dirige ao que é considerado “inadministrável”. Temos medo do Tsunami, do
Katrina e outros desastres naturais. O que se observa são erros de cálculo e
negligência humana. Para o sociólogo alemão, medo é o outro nome que damos à
nossa “falta de defesa”. E tudo isso ganha potência renovada diante desse mundo
globalizado, que permite temer o que não conhecemos e, também, aquilo que
jamais conheceremos.
Diante
dessa sociedade aberta ou líquido-moderna nos tornamos ainda mais vulneráveis e
nossa segurança é pouco confiável. O ser humano vive ameaçado por guerras de
proporções universais, por conflitos econômicos, políticos e sociais; pela
visão apocalíptica de um confronto entre o bem e o mal; pela regionalização da
política. Bauman considera a sucessão de falecimentos dos filósofos como
Althusser, Benoist e Loreau, destacando que para Jacques Derrida, “cada morte é
o fim de um mundo”, e a cada vez de um mundo singular, que jamais poderá
reaparecer ou ser ressuscitado. Numa época contemporânea, em que o pensamento
intelectual está cada vez mais sujeito a suspeitas de toda ordem, Bauman nos
auxilia a restituir um pensamento do poder nas idéias. O Medo pode ser
considerado um estudo do urbano; uma sociologia reflexiva que incide sobre nós
mesmos.
Esta obra
recupera, ainda, o trajeto original de um pensador que, após dedicar-se a
estudos do marxismo, passou a analisar a sociedade de consumo para chegar à
pós-modernidade. Por isso, a modernidade, para Bauman carrega ao mesmo tempo
duas lógicas: é sempre sólida, mas também líquida. O fato social de 11 de
Setembro, por exemplo, desempenhou para a modernidade papel semelhante ao que a
Tomada da Bastilha representou para o período moderno, sendo vistas com um
mesmo temor.
Na
sociedade humana, o medo é capaz de impulsionar e de se intensificar por si
mesmo. Na ótica do autor, o medo não é a conseqüência, mas a causa de nossos
males, de forma amplificada. As casas em regiões urbanas no mundo inteiro
existem agora para proteger seus moradores, não mais para integrar as pessoas
em suas comunidades. O resultado desastroso da relação nas áreas urbanas mais
privilegiadas, habitadas pela elite global, são as áreas abandonadas, os
guetos.
Em suma,
como todas as outras formas de coabitação humana, nossa sociedade
líquido-moderna é um dispositivo que tenta tornar a vida com medo uma coisa
tolerável. Em outras palavras, um dispositivo destinado a reprimir o horror ao
perigo, potencialmente conciliatório e incapacitante; a silenciar os medos
derivados de perigos que não podem, ou não devem, pela preservação da ordem
social, ser efetivamente evitados. Neste sentido, é necessário compreender que
instituições instáveis, são fruto da sociedade líquido-moderna e que o controle
social natural, na verdade, desmoronou, não passa de uma utopia.
Então, o
que nos resta? Não muito longe de nós, sobretudo a partir de Marx, o desafio em
questão era a lenta e inexorável decomposição do “agente histórico” que,
segundo a expectativa dos intelectuais (cientes dos padrões orgânicos
estabelecido para eles pelo código de conduta de Gramsci), iria introduzir (ou
ser introduzido em) uma terra em que o salto para a liberdade, - a igualdade e
a fraternidade, vislumbrado, porém mais tarde transformado nos becos sem saída
do capitalismo ou do comunismo, finalmente alcançaria seu destino socialista.
Sumariamente a classe trabalhadora representava por pelo menos um século, o
agente coletivo (histórico) da emancipação. É a partir desta expectativa que
Marx, Lênin, Lukács, Gramsci, Adorno, e tantos outros intelectuais através de
suas teorias expressavam suas expectativas, estratégias, e um status de
“guardiões” das esperanças e promessas irrealizadas do passado, como também
críticos de um presente culpado de esquecê-las e abandoná-las sem realização.
Assim aos
intelectuais realizar um esforço de repensar, como já o fizeram os intelectuais
citados por Bauman, de posse de um pensamento crítico, sobre a esperança e a
oportunidade de atingir um equilíbrio aceitável entre liberdade e segurança,
sobre essas duas condições sine qua non da sociedade humana.
E, em
segundo lugar, entre as esperanças do passado que precisam ser urgentemente
redimidas, no sentido kantiano do dever ser, num sentido de uma esperança que
pode tornar – vai tornar, deve tornar – possível o ato corajoso de ter
esperança, ele deve ser imaginado em escala planetária.
Bauman,
explicita que o século vindouro pode muito bem ser a época da derradeira
catástrofe. Ou pode ser o tempo em que um novo pacto entre os intelectuais e o
povo – agora significando a humanidade em seu conjunto – seja negociado e
trazido à luz. Para o autor, oxalá a escolha entre esses dois futuros ainda nos
pertença.